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Quarta-feira, Abril 24, 2024

O papel de África na escravatura transatlântica

Ao reconhecermos o papel desempenhado por nações africanas, como o Império do Mali, podemos entender melhor a complexidade do tráfico transatlântico de escravos e as suas consequências duradouras na sociedade contemporânea.

O papel de África na escravatura transatlântica.

A escravatura é uma prática hedionda que remonta a tempos idos e atravessa diferentes sociedades. Poder-se-ia pensar que é algo do passado, mas infelizmente, ainda hoje existe, estando apenas mais camuflada e ganhando outros nomes.

Ao discutirmos o racismo e a resistência negra na actualidade, é importante reconhecer as especificidades da escravatura. Na realidade, a escravatura já estava fortemente enraizada em África antes do tráfico transatlântico dos séculos XV a XIX, mas isto não deve servir para minimizar o impacto desse tráfico na vida moderna.

O tráfico transatlântico de escravos foi uma actividade global, na qual várias nações, incluindo potências estrangeiras como a Inglaterra, desempenharam um papel significativo, no entanto, estas potências, camuflaram os seus actos usando intermediários, acabando por responsabilizar Portugal, pelo trafico transatlântico.

Na realidade, muitos dos navios negreiros utilizados no comércio eram alugados a armadores portugueses por estas potências estrangeiras, o que levou à percepção errada de que, Portugal, teria sido a principal potência envolvida no tráfico transatlântico de escravos, uma vez que os navios navegavam com bandeira portuguesa.

Outra falácia muito “promovida” é a de atribuir exclusivamente aos portugueses a responsabilidade pela escravatura transatlântica. No entanto, é crucial reconhecer que o Império do Mali, teve um papel relevante no desenvolvimento desta prática tendo sido eles, na realidade, os primeiros a promover e a desenvolver a escravatura transatlântica.

A perspectiva do envolvimento do Império do Mali na promoção da escravatura transatlântica é muitas vezes negligenciada e merece maior atenção para se obter uma compreensão mais abrangente e justa deste período negro da história da humanidade.

 

A escravatura transatlântica

Imagem © DR (202304015) O papel de África na escravatura transatlântica (2)Durante o auge do tráfico transatlântico de escravos, várias potências estrangeiras, como a Inglaterra, desempenharam um papel significativo nesta actividade.

Uma prática comum, era a de alugarem navios negreiros a armadores portugueses, o que fazia com que esse navio navegasse sob bandeira portuguesa. Este facto, entre outros, levou à percepção errónea de que Portugal teria sido a principal potência envolvida no tráfico transatlântico de escravos.

Curiosamente, o primeiro transporte de escravos diretamente de África para as Américas, foi aprovado a 18 de Agosto de 1518, pelo rei Carlos I de Espanha. Os primeiros escravos a fazerem esse percurso terão sido obtidos através de um dos entrepostos que os portugueses, já na altura, possuíam na costa africana.

As várias potências europeias envolvidas no tráfico transatlântico de escravos, como a Espanha a França e a Inglaterra, além de Portugal, lucravam com o trabalho escravo nas suas colónias americanas e caribenhas.

Os escravos eram usados principalmente nas plantações de açúcar, algodão e tabaco, onde eram submetidos a condições desumanas de trabalho forçado. Além disso, os lucros gerados a partir do tráfico de escravos e das plantações eram reinvestidos na Europa, contribuindo para o desenvolvimento económico dessas potências.

Estas potências também estabeleceram acordos comerciais e diplomáticos com líderes africanos locais, garantindo o fornecimento contínuo de escravos para o tráfico transatlântico. Esses acordos muitas vezes envolviam trocas de armas e outros bens europeus por escravos, o que permitiu a expansão dos impérios europeus, aumento o seu poder militar e económico.

 

A responsabilidade do Mali

Imagem © DR (202304015) O papel de África na escravatura transatlântica (3)O Império do Mali que se estendeu entre os séculos XIII e XVI, foi uma das civilizações mais notáveis e influentes da África Ocidental. A sua prosperidade e estabilidade baseavam-se no comércio transaariano de ouro e sal e na prática da escravatura que já estava instituída e enraizada na região muito antes da chegada dos europeus.

Este império desempenhou um papel significativo no desenvolvimento da escravatura transatlântica. Os líderes do Mali estabeleceram relações comerciais com os europeus, fornecendo escravos em troca de armas e outros bens valiosos. Estas parcerias comerciais facilitaram a expansão do tráfico transatlântico de escravos e reforçaram o poder dos governantes africanos locais.

Adicionalmente, o Império do Mali também participou na captura e escravização de indivíduos pertencentes a outras etnias e regiões africanas, contribuindo para o aumento do tráfico transatlântico de escravos.

A participação activa do Mali e de outros estados africanos na escravatura transatlântica representa um facto histórico importante que muitos tentam esconder mas que não pode ser negligenciado, pois ajuda a compor uma imagem mais abrangente e equilibrada deste período temporal.

É essencial reconhecer a complexidade das dinâmicas envolvidas na escravatura transatlântica e o papel desempenhado pelos diferentes actores, incluindo os próprios africanos, para obter uma compreensão mais justa e completa deste trágico capítulo da história.

 

Da escravatura tradicional ao trafico transatlântico

Imagem © DR (202304015) O papel de África na escravatura transatlântica (4)É essencial distinguir as diferenças fundamentais entre o tráfico transatlântico de escravos e outras formas de escravatura existentes em África antes da chegada dos europeus.

A escravatura no continente africano geralmente resultava de conflitos entre grupos rivais, conquistas territoriais e diferenças religiosas e étnicas. Nestes contextos, a escravatura funcionava de maneira diferente do tráfico transatlântico, sendo mais vinculada a factores políticos e sociais locais do que a uma lógica económica globalizada.

É importante destacar que a escravatura já existia em África antes da chegada dos europeus. No entanto, a sua natureza e dimensão foram significativamente alteradas com o envolvimento dos europeus no tráfico de escravos.

Os europeus “refinaram” a escravatura em África, transformando-a numa prática mais sistemática e impulsionada pela procura global de mão-de-obra, com o objetivo de atender às necessidades económicas das potências coloniais na América e na Europa.

O tráfico transatlântico de escravos introduziu a ideia de que ser negro era sinónimo de ser escravo e vice-versa, numa dimensão global. Esta forma de escravatura foi legitimada com base na institucionalização de que as pessoas escravizadas, no caso as pessoas negras, não eram totalmente humanas, quer do ponto de vista cultural, quer biológico.

Ao contrário das formas de escravatura existentes em África antes da chegada dos europeus, o tráfico transatlântico de escravos fundamentou-se na noção de raça e na exploração da mão-de-obra para fins de “proto-industrialização” que posteriormente contribuiu para o surgimento do capitalismo.

A escala e a natureza desumanizadora do tráfico transatlântico de escravos resultaram em um legado duradouro de racismo e discriminação racial que persiste até hoje em várias sociedades.

Desta forma, é crucial analisar o tráfico transatlântico de escravos como uma prática distinta das formas de escravatura existentes em África antes do envolvimento dos europeus. É importante perceber estas diferenças, pois só dessa forma é que é possível obtermos uma compreensão mais abrangente e contextualizada do legado da escravatura e das suas consequências.

 

O envolvimento dos Reinos africanos

Imagem © DR (202304015) O papel de África na escravatura transatlântica (5)Embora o tráfico transatlântico de escravos tenha sido impulsionado em grande parte pelos europeus, é importante notar que grandes nações africanas como o Império do Mali também tiveram um papel significativo no desenvolvimento dessa prática.

A captura e venda de escravos não era algo novo em África, mas a sua dimensão e propósito mudaram com a chegada dos europeus e a crescente procura por mão-de-obra nas colónias americanas.

O Império do Mali, era uma das maiores e mais poderosas civilizações da África Ocidental e já praticava a escravatura internamente antes do envolvimento europeu no comércio de escravos.

No entanto, com a chegada dos europeus, os líderes do Mali adaptaram-se a esta nova realidade económica e começaram a capturar escravos especificamente para alimentar o crescente mercado internacional, promovendo dessa forma a criação e expansão do tráfico transatlântico,

Registos históricos mostram que o Mali e outras nações africanas, como o Reino do Kongo e o Reino de Oyo, estabeleceram relações comerciais com os europeus, trocando escravos por bens como armas, tecidos e objectos de luxo. Essas trocas comerciais permitiram o crescimento do tráfico transatlântico de escravos e ajudaram a consolidar o poder dos líderes africanos locais.

Essa participação ativa do Mali e de outros estados africanos na escravatura transatlântica é um facto histórico que não deve ser ignorado, uma vez que fornece uma visão mais completa e equilibrada do período em questão.

Ao reconhecermos o papel desempenhado por nações africanas, como o Império do Mali, podemos entender melhor a complexidade do tráfico transatlântico de escravos e as suas consequências duradouras na sociedade contemporânea.

 

O envolvimento de Portugal e a criação do mito

Imagem © DR (202304015) O papel de África na escravatura transatlântica (6)Portugal teve um papel significativo no tráfico de escravos no Atlântico, sendo responsável por aproximadamente de um terço a metade dos 12 milhões de habitantes retirados de África e escravizadas nas Américas entre os séculos XVI e XIX. Contudo, é fundamental analisar as nuances e os contextos históricos que influenciaram esses números.

De facto, potências estrangeiras, como a Inglaterra, alugavam navios negreiros a armadores portugueses, contribuindo para uma percepção imprecisa de que Portugal foi a potência que mais praticou o tráfico.

Esses países, tiveram um papel crucial na promoção e expansão do comércio de escravos. No entanto, uma vez que os navios navegavam sob bandeira portuguesa, o tráfico acabou por ser atribuído erroneamente a Portugal, gerando-se um mito que perdura até aos dias de hoje,

Além disso, a contabilização do tráfico realizado após a independência do Brasil em 1822 também influencia as estimativas e as interpretações relativas à participação portuguesa no tráfico transatlântico de escravos.

A dimensão económica e as relações de poder entre as elites portuguesas e brasileiras são aspectos relevantes a considerar, já que as antigas famílias escravocratas portuguesas no Brasil, os circuitos de circulação e acumulação de riqueza e as suas redes de influência continuaram a beneficiar indirectamente Portugal, mesmo após a independência do país sul-americano.

Em suma, é crucial ter em conta os diversos fatores históricos, políticos e económicos que moldaram o envolvimento de Portugal no tráfico transatlântico de escravos para obter uma compreensão mais precisa e equilibrada do papel do país neste triste capítulo da história mundial.

 

Os mitos africanos

Imagem: © 2022 Francisco Lopes-Santos / Njinga Mbande a N’gola Kiluanje
Imagem: © 2022 Francisco Lopes-Santos

Outro dos mitos que perduram até aos dias de hoje é o do envolvimento das figuras históricas negras que, supostamente, desempenharam um papel crucial na resistência à escravatura e ao racismo, lutando bravamente contra a escravização dos seus povos pelos europeus.

Entre elas, destaca-se Nzinga Mbandi Rainha do Reino do Ndongo (Angola) e fundadora do Reino da Matamba que se opôs fortemente ao domínio português e, supostamente, à escravização de seu povo, mas na realidade, manteve o comercio de escravos para o benefício do seu reino, apenas impedindo os portugueses ao seu acesso para impedir que estes não ganhassem demasiado poder.

Além dela, outras mulheres, como Dandara dos Palmares, descrita como uma heroína que lutou ao lado dos homens contra a escravatura, mas acabou por ser a principal responsável pela assinatura de um acordo de paz entre o governo de Pernambuco e o Quilombo de Palmares, onde não se opunha à escravatura e, pior do que isso, se comprometia a entregar escravos fugitivos que ali buscassem abrigo.

Embora nem todas essas figuras históricas tenham rompido completamente com a escravatura e as estratificações sociais em que se baseava, a sua luta teve um impacto significativo na história. Ao reconhecer e valorizar a contribuição dessas mulheres corajosas, podemos desenvolver uma compreensão mais inclusiva e completa da história da resistência negra à escravatura e ao racismo.

É importante também mencionar que essas líderes enfrentaram dilemas e contradições nas suas lutas, já que muitas vezes tiveram de lidar com os complexos sistemas de poder e as dinâmicas sociais das suas respectivas épocas. Porém, o seu legado e o seu papel na resistência à escravatura são inquestionáveis e merecem ser lembrados e celebrados.

Ao analisar a vida e as conquistas dessas mulheres, podemos obter uma visão mais abrangente das dinâmicas históricas e das relações de poder que moldaram a luta contra a escravatura e o racismo. Esta análise contribui para uma historiografia mais justa e inclusiva que reconhece a importância das mulheres negras na construção de uma sociedade mais liberal e livre de opressão.

 

A resistência à escravatura

Imagem © DR (202304015) O papel de África na escravatura transatlântica (8)A resistência à escravatura e ao racismo também deve ser abordada no contexto histórico mais amplo, incluindo as lutas e movimentos abolicionistas, tanto na Europa quanto nas Américas.

A abolição da escravatura no Brasil, por exemplo, foi resultado de um longo processo de lutas e resistência, incluindo a pressão exercida pelos abolicionistas, como Luís Gama e Joaquim Nabuco, e os esforços das próprias comunidades escravizadas.

Além disso, é importante considerar o impacto da escravatura e do tráfico transatlântico de escravos na formação das identidades culturais e nacionais dos países envolvidos. A cultura afro-brasileira, por exemplo, foi profundamente influenciada pela herança africana e pela experiência da escravidão.

A música, a dança, a culinária e as tradições religiosas afro-brasileiras são reflexo da rica tapeçaria cultural criada pela mistura de elementos africanos, indígenas e europeus. Ao apreciar e valorizar essa diversidade cultural, podemos construir uma sociedade mais tolerante e inclusiva.

A abolição da escravatura no século XIX não marcou o fim das desigualdades raciais e do racismo nas sociedades envolvidas no tráfico transatlântico de escravos. Em muitos casos, as hierarquias raciais e as formas de discriminação e violência perpetuaram-se em diferentes contextos, como o apartheid na África do Sul e a segregação racial nos Estados Unidos.

Para enfrentar essas questões, é fundamental investir na educação e na conscientização sobre a história da escravatura e do tráfico transatlântico de escravos, bem como promover políticas e iniciativas destinadas a combater o racismo e a desigualdade racial.

Em última análise, a história da escravatura e do tráfico transatlântico de escravos é uma história de dor, sofrimento e injustiça, mas também de resistência e esperança. Ao enfrentar o legado dessa história e trabalhar para construir uma sociedade mais justa e liberal, podemos honrar a memória daqueles que lutaram e sofreram, e garantir que o seu sacrifício não tenha sido em vão.

 

Conclusão

Imagem © DR (202304015) O papel de África na escravatura transatlântica (9)O tráfico transatlântico de escravos foi um fenómeno complexo, no qual várias potências estrangeiras, como a Inglaterra, e impérios africanos, como o Império do Mali, desempenharam papéis significativos. A atribuição exclusiva do tráfico transatlântico de escravos a Portugal é incorreta e simplista, uma vez que ignora a participação de outros actores e as dinâmicas de poder envolvidas.

Reconhecer o papel das potências estrangeiras e do Império do Mali na promoção da escravatura transatlântica é crucial para uma compreensão mais justa e completa da história e para informar os debates actuais sobre o racismo e a resistência negra.

Além disso, a identificação das diferenças fundamentais entre o tráfico transatlântico e outras formas de escravatura em África permite uma análise mais matizada das raízes históricas do racismo e da discriminação racial na sociedade contemporânea.

Ao examinar as especificidades de cada contexto e os actores envolvidos na luta contra o racismo e a promoção da igualdade, podemos trabalhar para criar um mundo mais justo e inclusivo, no qual a história seja reconhecida e abordada de forma abrangente e equitativa.

 

O que achas disto? Sabias que não foram os europeus os responsáveis pela escravatura pois ela já estava institucionalizada em África antes da sua chegada? Queremos saber a tua opinião, não hesites em comentar e se gostaste do artigo partilha e dá um “like/gosto”.

 

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Imagem: © DR
Francisco Lopes-Santos
Francisco Lopes-Santos

Ex-atleta olímpico, tem um Doutoramento em Antropologia da Arte e dois Mestrados um em Treino de Alto Rendimento e outro em Belas Artes. Escritor prolifero, já publicou vários livros de Poesia e de Ficção, além de vários ensaios e artigos científicos.

Francisco Lopes-Santoshttp://xesko.webs.com
Ex-atleta olímpico, tem um Doutoramento em Antropologia da Arte e dois Mestrados um em Treino de Alto Rendimento e outro em Belas Artes. Escritor prolifero, já publicou vários livros de Poesia e de Ficção, além de vários ensaios e artigos científicos.
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