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Domingo, Outubro 5, 2025

A Arte do Lixo: Moffat Takadiwa, Tecidos do Desperdício

E se o lixo pudesse falar que histórias nos contaria? Talvez nos falasse de histórias de abandono e de desperdício além de consumo desenfreado que devora recursos sem pensar no amanhã, ou talvez nos lembrasse que cada objecto carrega uma memória, um uso, uma vida anterior. Em África há artistas que ousam dar-lhe outra voz: a voz da beleza, da memória e da resistência cultural. São criadores que não vêem lixo, mas sim matéria-prima para a imaginação, símbolos de resistência e possibilidades infinitas. No lixo que a sociedade descarta, eles descobrem matéria-prima para reinventar a vida e inspirar comunidades inteiras.

A Arte do Lixo: Moffat Takadiwa, Tecidos do Desperdício


Conheces os artistas africanos que transformam lixo em arte? Não? Então prepara-te para conhecer Moffat Takadiwa, um dos nomes mais sonantes da arte contemporânea feita a partir de materiais descartados, reutilizando os resíduos do consumismo, como teclados de computador, tampas de garrafas, tubos de pasta de dentes, escovas de dentes e outros objectos que viraram lixo.

Com uma mistura única de tradição, inovação, monumentalidade, crítica social e consciência ambiental, estes artistas reciclam metais, plásticos, tecidos, objectos abandonados, restos de tecnologia e até armas, dando-lhes uma segunda vida sob a forma de esculturas, instalações e obras de arte mostrando como em África, os resíduos e o improvável podem ser matéria-prima de beleza, reflexão e identidade.

Neste quarto artigo, de uma série de 17, dedicada a criadores visionários que reinventam o conceito de arte a partir de materiais descartados, vamos conhecer um artista que transformou a reciclagem em símbolos de espiritualidade. A sua arte é um manifesto ambiental, onde revela que o desperdício pode renascer como símbolo de beleza e resistência.

Oriundo da tradição Korekore, carrega a sua herança cultural para o interior das obras, cruzando o simbolismo africano com a crítica contemporânea à desigualdade, ao consumo excessivo e às consequências do colonialismo, tendo criado de espaços como a fundação Mbare Art Space, em Harare, o primeiro centro artístico do mundo dedicado exclusivamente à reutilização de materiais recuperados.

Se procuras inspiração, inovação e uma perspectiva diferente sobre o que a arte pode ser e por que razão África está no centro das grandes discussões mundiais, não percas esta viagem. Nestes artigos, vais ficar a conhecer artistas que desafiam os limites do possível e que fazem de África um palco vibrante da arte contemporânea feita a partir do inesperado: o lixo.


Moffat Takadiwa


(20251004) A Arte do Lixo Moffat Takadiwa, Tecidos do Desperdício
Imagem: © 2025 Courtesy of Moffat Takadiwa

Moffat Takadiwa nasceu em 1983, em Tengwe, distrito de Hurungwe, Zimbabwe. Pertencente à geração “born free”, formada após a independência do país, licenciou-se em Belas-Artes no Harare Polytechnic em 2008 e desde cedo construiu uma linguagem artística própria, centrada na transformação de resíduos em arte monumental.

O contacto com os mercados informais e os centros de reciclagem marcaram decisivamente a sua visão estética. Crescido num contexto de escassez, em que os materiais artísticos convencionais eram inacessíveis, Moffat Takadiwa apropriou-se do que o quotidiano rejeitava.

Dessa forma, pegou em teclados de computador, tampas de garrafas, escovas, tubos de pasta de dentes e outros fragmentos plásticos e organizou esses elementos, em tapeçarias murais e esculturas densas, evocando tecidos tradicionais africanos e, simultaneamente, expondo as contradições da sociedade africana contemporânea.

Cada obra sua reflecte as tensões sociais e culturais do Zimbabwe, entrelaçando passado colonial, globalização e identidade loca, ao dar nova vida ao lixo urbano e electrónico, denunciando um sistema que gera abundância e desperdício, mas mantém comunidades inteiras na pobreza.

O bairro de Mbare, em Harare, tornou-se o epicentro da sua actividade criativa. Ali, Moffat Takadiwa fundou o Mbare Art Space, um estúdio colectivo que funciona como laboratório comunitário, onde jovens artistas exploram a reciclagem como linguagem estética e social.

A infância em Tengwe e Hurungwe deixou-lhe uma ligação forte à cultura Korekore, do povo Shona, herança que transparece nas suas obras. Através dela, une a tradição rural ao panorama urbano marcado pelo lixo, pela desigualdade e pelas novas formas de dependência económica.

As suas composições, que lembram tapeçarias rituais vistas de longe, ao pormenor, revelam fragmentos do consumo cotidiano, tornam-se metáforas visuais das contradições do presente. Mais do que plástico, Moffat Takadiwa trabalha com memórias e restos, construindo uma arqueologia contemporânea que questiona o poder, a língua e a pertença.


A Estética do Rejeitado


(20251004) A Arte do Lixo Moffat Takadiwa, Tecidos do Desperdício B
Imagem: © 2019 Nicodim Gallery

O trabalho de Moffat Takadiwa distingue-se pelo uso engenhoso e poético de resíduos pós-consumo, transformando o que é geralmente considerado lixo, em matéria de contemplação e questionamento. Nas suas mãos, o rejeitado converte-se em simbolismo e beleza.

Esse lixo, outrora descartado, é entrelaçado e organizado numa estética que evoca tapeçarias tradicionais, formas rituais e composições orgânicas. As obras de Moffat Takadiwa lembram objectos totémicos, estruturas naturais e padrões inspirados na própria vida, como se os materiais, uma vez reunidos, voltassem a pulsar, apresentando elementos biológicos, espirituais e políticos.

Essa transformação material e simbólica revela a força do gesto artístico: fazer do lixo um veículo de memória e de reflexão. A complexidade visual das suas criações contrasta com a simplicidade do material de origem. Cada obra resulta de um processo paciente de “encontrar, limpar, recolher, agrupar, tecer e montar” — um labor colectivo que envolve uma verdadeira comunidade de trabalho.

Moffat Takadiwa colabora com apanhadores de lixo de Harare, antigos trabalhadores informais que conhecem intimamente os fluxos do desperdício urbano. Ao integrá-los no seu processo criativo, transforma uma actividade marginal em acto artístico e social.

Paga-lhes pelo contributo, envolve-os na selecção e montagem dos materiais e devolve-lhes rendimento, dignidade e pertença. Assim, a sua arte não é apenas feita com o lixo, mas contra o lixo — contra a exclusão e a invisibilidade que ele simboliza.

Há também uma dimensão espiritual nesse gesto de resgate. Dar nova vida a um objecto descartado é restituir-lhe significado — um acto de cura e de reconciliação simbólica. Na tradição cultural africana, especialmente na do Zimbabwe, o vínculo entre o ser humano e o ambiente é sagrado e interdependente.

A obra de Moffat Takadiwa reinterpreta essa ligação ancestral, transformando os restos materiais da vida moderna em pontes entre o passado e o presente.

A Densidade das Suas Obras


Visualmente, as criações de Moffat Takadiwa destacam-se pela densidade táctil e pela força rítmica. Parecem grandes tapeçarias murais que, vistas de longe, lembram tecidos cerimoniais; de perto, revelam a intricada montagem de teclados de computador, escovas de dentes, tampas de garrafas, tubos, frascos plásticos, fragmentos metálicos e pequenos fragmentos industriais.

O processo é metódico e profundamente artesanal. Começa com a recolha e selecção criteriosa dos materiais, segue-se a limpeza e preparação das peças e culmina no entrelaçar paciente de milhares de fragmentos, até formar superfícies complexas que oscilam entre o mosaico e o tecido, entre o orgânico e o industrial.

Cada detalhe é cuidadosamente pensado, revelando um equilíbrio entre disciplina e improviso. A cor desempenha um papel essencial, operando como elemento rítmico e simbólico. Os seus padrões, alternam entre o rigor geométrico e a fluidez natural, evocando água, raízes ou motivos inspirados nos tecidos tradicionais Shona.

Predominam tons terrosos e metálicos que reforçam a sensação de ancestralidade, peso e memória, como se cada peça carregasse a memória da terra de onde veio. A acumulação e repetição de pequenas unidades criam uma força visual de natureza quase ritual — uma pulsação contínua entre ordem e caos.

Cada fragmento guarda vestígios do seu uso anterior, tornando a obra uma narrativa sobre o consumo, o desperdício e a reconstrução social. O conjunto dessas partes compõe uma narrativa silenciosa sobre a história dos objectos e das pessoas que os manipularam, revelando que no lixo há sempre memória e possibilidade de renascimento.

Reconhecimento Internacional


A arte de Moffat Takadiwa tem sido amplamente reconhecida em exposições internacionais, como a Say Hello to English, apresentada na Tyburn Gallery, em Londres, abordou a herança colonial e o domínio da língua inglesa. Mostras na Nicodim (Los Angeles) e na Semiose (Paris) confirmaram a relevância mundial do seu trabalho que alia rigor formal, consciência ecológica e pensamento crítico.

As suas obras de grande escala transcendem a fronteira entre escultura e tapeçaria: ocupam o espaço e transformam o olhar do público. Ao revelar a beleza do que foi descartado, Moffat Takadiwa convida-nos à reflexão sobre o valor, o consumo e permanência. No seu universo, nada é verdadeiramente lixo — tudo é matéria com potencial de renascimento.


O Simbolismo da Sua Obra


(20251004) A Arte do Lixo Moffat Takadiwa, Tecidos do Desperdício
Imagem: © 2016 Cortesy of Tyburn Gallery

O simbolismo na sua obra de é denso, múltiplo e profundamente enraizado na história contemporânea de África. Moffat Takadiwa procura abrir um diálogo sobre os resíduos coloniais — materiais, linguísticos e mentais — que ainda moldam o quotidiano africano. Essa intenção percorre todo o seu trabalho, convertendo o gesto de recolher e reutilizar o lixo em um acto de crítica e reconfiguração cultural.

Ao reaproveitar objectos da modernidade, transforma os vestígios de um passado de dependência e de um presente de consumismo em matéria de resistência poética. As suas peças funcionam como palimpsestos visuais, onde se sobrepõem memórias, exploração e adaptação. O que parece mera composição formal revela-se uma escrita silenciosa da história.

Língua, Educação e Poder


Uma das leituras centrais da sua obra refere-se à língua e à educação, instrumentos persistentes da herança colonial. Em trabalhos como Say Hello to English, Moffat Takadiwa utiliza teclas e letras de teclados para questionar o domínio da língua inglesa e o modo como o sistema educativo herdado do colonialismo continua a moldar as identidades e a deslocar saberes locais.

Ao integrar esses signos na sua composição, converte os símbolos administrativos e culturais em elementos plásticos, transformando-os numa recitação visual sobre imposição e resistência. O inglês, outrora veículo de poder e exclusão, torna-se em um fragmento decorativo, em matéria reinventada pela experiência africana.

Espiritualidade e Ética da Reciclagem


Para além da dimensão política, as formas criadas por Moffat Takadiwa evocam o ritual e o sagrado. As suas tapeçarias murais recordam panos cerimoniais e estandartes que, em várias tradições africanas, funcionam como mediadores entre o mundo humano e o espiritual.

O lixo industrial, reorganizado e estetizado, ganha um novo estatuto simbólico: de desperdício a totem. Essa transmutação confere uma dimensão ética à sua arte — uma ética que reivindica dignidade para o que foi rejeitado e denuncia os modos de produção e consumo responsáveis pela degradação ambiental e social. Criar, também é curar: curar objectos, memórias e desigualdades.

Afirmação Cultural e Pertença


O simbolismo de Moffat Takadiwa não é apenas crítico, é também afirmativo. Ao empregar padrões e ritmos que lembram motivos tradicionais, afirmando assim a pertença cultural africana. As suas obras falam de terra, raízes e memórias colectivas, mas também projectam uma visão de futuro: uma estética baseada no reaproveitamento, na partilha e na sustentabilidade.

Cada obra é simultaneamente memória, denúncia e celebração — coexistem nela as marcas do passado colonial, as tensões do presente e o desejo de um futuro autónomo.

Colonialismo e Língua


Moffat Takadiwa explora as marcas profundas que o colonialismo deixou nas estruturas políticas, económicas e simbólicas, estendendo-se à língua, às práticas culturais e aos objectos quotidianos.

Na obra Second Hand Information, 2014 (Informação em Segunda Mão), utiliza teclados ingleses para questionar a dominação linguística e inverter hierarquias de poder. Ao recompor as teclas, desfaz a ordem imposta da escrita colonial, libertando-as do seu uso funcional e transformando-as em matéria estética.

O título ironiza o facto de o conhecimento transmitido pela via colonial ser sempre fragmentário e mediado, uma herança que precisa ser reconstruída a partir da perspectiva africana.

Consumo, Desigualdade e Ambiente


Outro eixo constante da sua obra é a crítica ao consumo e às desigualdades globais. Moffat Takadiwa vê nas pilhas de plástico e nos campos de lixo urbano uma metáfora da injustiça mundial: os resíduos do “mundo rico” acabam nos países pobres, perpetuando a dependência e a contaminação.

Denuncia dessa forma, o fluxo desigual de bens e lixo, bem como a precariedade das infra-estruturas locais e a marginalização das comunidades afectadas. Assim, o lixo deixa de ser mero material: torna-se em documento social, uma arqueologia do consumo e uma cartografia das desigualdades.

Identidade Cultural e Ancestralidade


A cultura Korekore, subdivisão do povo Shona, é o alicerce espiritual e estético da sua obra. Padrões de tecelagem, artesanato tradicional e oralidade comunitária são reintroduzidos num contexto global.

Ao fazê-lo, Moffat Takadiwa, valoriza práticas ancestrais marginalizadas pelo modelo ocidental e reintegra-as no discurso contemporâneo. A sua estética propõe uma reconciliação entre memória e modernidade, entre identidade local e visibilidade internacional.

Memória, História e Política


A relação de Moffat Takadiwa com a história é crítica, não nostálgica. Ele transforma os vestígios coloniais — objectos importados e resíduos industriais — numa arqueologia política da desigualdade entre África e o Ocidente. Cada fragmento reaproveitado é um testemunho material de exploração e resistência.

Ao recolher, limpar e rearranjar esses fragmentos, converte o passado em um instrumento de reflexão. A sua arte é, ao mesmo tempo, documento e protesto, oração e manifesto.


Exposições e Reconhecimento


(20251004) A Arte do Lixo Moffat Takadiwa, Tecidos do Desperdício
Imagem: © 2023 Cortesy of Nicodim Gallery

Ao longo da sua trajectória, Moffat Takadiwa consolidou-se como uma das vozes mais influentes da arte contemporânea africana. A sua presença é constante em exposições internacionais, residências artísticas e projectos curatoriais que ampliaram o alcance do seu trabalho.

Exibiu em galerias e museus da Europa, América do Norte e África, levando consigo uma linguagem visual inconfundível que articula pós-colonialismo, consumo e sustentabilidade.

O reconhecimento internacional de Moffat Takadiwa resulta de uma prática que alia rigor conceptual e compromisso social. Cada exposição é, para ele, um espaço de diálogo e partilha. No Zimbabwe, mantém uma relação próxima com a National Gallery, onde apresentou em 2023 Vestiges of Colonialism, uma reflexão sobre a persistência das estruturas coloniais.

Em 2024, a mostra viajou para a Nicodim Gallery (Bucareste), expandindo o debate para o contexto europeu. Em 2025, a sua participação na Bienal de São Paulo (Brasil) marcou um ponto alto da carreira. A instalação Portals to Submerged Worlds reinterpretou a simbologia da Arca de Noé para meditar sobre destruição e reconstrução, combinando crítica ambiental e espiritualidade.

Antes disso, em Possible New Dawn (Los Angeles), explorara a ideia de “novo amanhecer” como metáfora de regeneração cultural e reencontro com a identidade africana. Essa mesma reflexão prolongou-se em Across Borders (Cidade do Cabo), onde abordou o conceito de fronteira — geográfica, linguística e cultural — revelando como até os resíduos viajam, como pessoas e ideias.

Entre as obras mais emblemáticas destacam-se Second Hand Information (2014), apresentada no Jameel Arts Centre que questiona o poder da língua inglesa e a erosão das línguas locais e The Brain Drain (2022), uma metáfora da fuga de cérebros africanos, realizada com teclados e componentes electrónicos.

Vestiges of Colonialism funciona como um manifesto visual sobre a persistência do passado colonial nas redes de consumo e dependência mundial.

As suas obras integram colecções institucionais e privadas de prestígio — da Roc Nation (Los Angeles), CC Foundation (Xangai), Centre National d’Art Plastique (Paris), Parlamento Europeu (Bruxelas) e National Gallery do Zimbabwe — confirmando o seu papel de mediador entre mundos: o local e o global, o tradicional e o tecnológico, o descartável e o eterno.

Crítica Social e Consciência Ambiental


A arte de Moffat Takadiwa é crítica, mas profundamente esperançosa. A sua denúncia da desigualdade, do consumo e das heranças coloniais está atravessada por uma crença na regeneração. Nas suas mãos, o lixo transforma-se em objecto de contemplação e respeito e o gesto de tecer e recompor fragmentos torna-se uma metáfora da reconstrução social.

A sua crítica ultrapassa a ecologia: questiona também as hierarquias de valor que estruturam as relações humanas. Ao converter o descartável em arte, Moffat Takadiwa devolve dignidade ao invisível e valor ao trabalho manual. Cada obra é uma lição de economia moral, um acto de resistência e reapropriação da criatividade.

Capacitação Cultural e Educativa


O seu impacto vai além das galerias. Em Mbare, bairro de Harare, fundou o Mbare Art Space, um centro de criação e partilha para jovens interessados no reaproveitamento e na crítica social através da arte. Trabalha com apanhadores de lixo e recicladores, paga pelo seu contributo e transforma a recolha de lixo num acto colectivo de criação.

A sua pedagogia assenta na ideia de que a arte pode ser instrumento de inclusão. Os ateliers e oficinas que dirige incentivam os participantes a reconhecer a beleza na imperfeição e o poder transformador da matéria recuperada. O projecto inspirou uma nova geração de artistas no Zimbabwe a olhar os resíduos urbanos como territórios de reinvenção.

Reconhecimento e Legado


A crítica especializada e as instituições culturais internacionais reconhecem em Moffat Takadiwa uma das vozes mais relevantes da arte africana do século XXI. O seu trabalho tem sido amplamente estudado e exibido em feiras e bienais de prestígio, onde o seu discurso sobre consumismo, ambiente e identidade encontra respaldo global.

Contudo, o verdadeiro alcance da sua obra está na coerência entre a ética e a prática. Moffat Takadiwa une a produção visual, a consciência comunitária e o pensamento ecológico num mesmo gesto.

É parte de uma geração de criadores africanos pós-independência que redefinem o papel da arte no continente — não imitando modelos ocidentais, mas construindo linguagens próprias, enraizadas na memória, na ecologia e na crítica política.

A sua trajectória exemplifica como a arte pode ser um acto de resistência, um instrumento de emancipação e uma ponte entre o passado e o futuro. Feitas de lixo, as suas obras convertem-se em monumentos de dignidade — testemunhos materiais de uma África que transforma a adversidade em criação.


O Mbare Art Space


(20251004) A Arte do Lixo Moffat Takadiwa, Tecidos do Desperdício
Imagem: © 2020 Courtesy of Moffat Takadiwa

A dimensão comunitária é um dos pilares centrais do projecto artístico de Moffat Takadiwa. O seu compromisso vai além da criação de obras para galerias: ele vê a arte como uma ferramenta de inclusão, formação e criação de rendimentos, capaz de restaurar a dignidade e de criar oportunidades reais.

Em Harare, transformou uma antiga cervejaria abandonada no Mbare Art Space, um centro de efervescência cultural, onde os jovens artistas encontram materiais, orientação e um sentido de pertença. Ali, a arte deixa de ser um privilégio e torna-se em ofício e comunidade.

As oficinas conduzidas por Moffat Takadiwa promovem a participação colectiva e baseiam-se em princípios de selecção, limpeza e reutilização de resíduos. O reaproveitamento transforma-se em técnica e ética: implica responsabilidade ambiental, respeito pelo trabalho manual e valorização da economia local.

Muitos participantes, vindos de contextos desfavorecidos, encontram nessas práticas meios de subsistência e afirmação pessoal, aprendendo que a arte pode ser um acto de reconstrução social. O espaço também funciona como plataforma de desenvolvimento económico e cultural, gerando cadeias de valor e parcerias com instituições internacionais.

O Mbare Art Space é estúdio, galeria e escola — um símbolo de revitalização urbana e solidariedade. Moffat Takadiwa demonstra que a arte pode unir a educação, a cultura, o ambiente e a economia, transformando o “lixo” em futuro.

Mais do que um espaço físico, o Mbare Art Space é hoje um laboratório de transformação social e uma referência continental. A sua existência prova que a arte, orientada para o bem comum, pode dignificar comunidades e alimentar uma economia criativa sustentável.


Desafios e Perspectivas Futuras


(20251004) A Arte do Lixo Moffat Takadiwa, Tecidos do Desperdício
Imagem: © 2025 Cortesy of Nicodim Gallery

As mensagens sociais e ambientais na obra de Moffat Takadiwa são claras e enraizadas numa visão ética da criação. Ao utilizar materiais descartados, expõe as contradições da economia mundial: o desperdício, a obsolescência e as desigualdades geradas pelo consumo. Cada objecto recolhido traz uma história — um vestígio do sistema que privilegia o imediato sobre a sustentabilidade.

As suas obras funcionam como arquivos materiais da vida moderna, convertendo o lixo em testemunho e o resto em memória colectiva. Moffat Takadiwa revela como os hábitos de consumo espelham hierarquias económicas, ambientais e culturais.

Outro eixo central é a relação entre o colonialismo, a linguagem e o conhecimento. Ao reutilizar teclas e fragmentos de teclados, questiona a naturalização da língua inglesa e dos sistemas educativos coloniais. O gesto de reorganizar letras é um acto de descolonização estética, onde os instrumentos de dominação se tornam símbolos de resistência.

A dimensão ambiental da sua prática é simultaneamente simbólica e pragmática. O acto de recolher, limpar e recompor lixo demonstra uma economia circular possível, capaz de gerar valor económico, beleza e consciência ecológica.

Moffat Takadiwa também integra a criação com formação comunitária, envolvendo jovens e apanhadores de lixo em processos de aprendizagem e inclusão. Assim, a arte deixa de ser mera contemplação para se tornar um forte instrumento de transformação social.

Apesar dos desafios económicos e institucionais do Zimbabwe, mantém uma postura visionária. Em Recoded Memories (2025–2026), presentemente exposto no W&L Art Museum (EUA), aprofunda os temas de memória, do consumo e do poder, criando experiências imersivas unicas.

Ao transformar lixo em arte e arte em consciência, Moffat Takadiwa ergue um monumento à resistência humana e ambiental — reafirmando que a beleza nasce do que é recuperado e reimaginado.


Conclusão


A obra de Moffat Takadiwa alia crítica, memória e transformação social. Ao transformar lixo em tapeçarias e objectos cerimoniais, propõe uma leitura do presente a partir dos vestígios do quotidiano. Cada composição combina rigor estético e consciência política, questionando o consumismo moderno, a linguagem e a pertença.

Apesar de estar enraizado na sua experiência do Zimbabwe, o seu trabalho fala um idioma universal — o da sobrevivência, da reinvenção e da dignidade. Moffat Takadiwa converte o lixo material em memória sensível, restaurando valor ao que o sistema descarta. As suas obras revelam que o desperdício é matéria de reflexão e que a beleza pode emergir onde o mundo apenas vê ruína.

A dimensão comunitária e pedagógica da sua prática é uma parte essencial do seu legado. No Mbare Art Space, em Harare, criou um espaço de aprendizagem e formação, onde os jovens descobrem na arte um meio de subsistência e expressão. A arte, torna-se assim, uma ferramenta de inclusão e desenvolvimento — uma ponte entre o marginalizado e o visível.

Reconhecido internacionalmente, Moffat Takadiwa inspira uma nova geração de criadores africanos a construir linguagens próprias sem romper o diálogo mundial. O seu exemplo mostra que o reaproveitamento não é gesto menor, mas estratégia estética e social de grande alcance.

Em última instância, a sua obra é um acto político e ético: transforma lixo em história, desperdício em significado e dificuldade em oportunidade. Moffat Takadiwa recorda-nos que a arte não serve apenas para decorar o mundo, mas também serve para o reparar.

 


O que achas da história extraordinária de Moffat Takadiwa? Queremos saber a tua opinião, não hesites em comentar e se gostaste do artigo partilha e dá um “like/gosto”.

 

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A Arte do Lixo: Moffat Takadiwa, Tecidos do Desperdício

 

Imagem: © 2024 Marshall Takadiwa
Francisco Lopes-Santos

Atleta Olímpico, tem um Doutoramento em Antropologia da Arte e dois Mestrados, um em Treino de Alto Rendimento e outro em Belas Artes, além de vários cursos de especialização em diversas áreas. Escritor prolifero, já publicou vários livros de Poesia e de Ficção, além de vários ensaios e artigos científicos.

Francisco Lopes-Santos
Francisco Lopes-Santoshttp://xesko.webs.com
Atleta Olímpico, tem um Doutoramento em Antropologia da Arte e dois Mestrados, um em Treino de Alto Rendimento e outro em Belas Artes, além de vários cursos de especialização em diversas áreas. Escritor prolifero, já publicou vários livros de Poesia e de Ficção, além de vários ensaios e artigos científicos.
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