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ToggleFestas de África: FESMAN, A Alma Pan-Africana
Conheces o FESMAN? Não? Então prepara-te para descobrir o festival que esteve na origem do conceito de negritude e que deu início ao pan-africanismo.
O FESMAN (Festival Internacional de Arte Negra) é a prova de que a cultura pode ser revolucionária. Criado em 1966 pelo poeta-presidente senegalês Léopold Sédar Senghor, este evento pan-africano desafia estereótipos há quase seis décadas. Não se trata apenas de música ou dança: é um diálogo sobre identidade, libertação e o lugar de África no mundo.
Hoje, continuamos a nossa série de 17 artigos sobre Festas de África, mergulhando naquele que é, provavelmente, o mais importante de todos. Na era das independências africanas, o FESMAN surgiu como um acto político disfarçado de celebração. Enquanto países como o Gana e o Congo lutavam para se libertar do colonialismo.
“A nossa arte não é exótica. É filosofia em movimento”.
Foi essa a filosofia por detrás da criação do conceito de negritude uma forma radical de pensar que despertou aquilo que é hoje conhecido por “consciência negra”. A primeira edição reuniu 2.500 artistas de 30 países, da diáspora às florestas do Brasil.
Na nossa série sobre festas de África, exploramos hoje um evento que transcende fronteiras e décadas. Mesmo irregular (a última edição ocorreu em 2024, após 14 anos de pausa), o FESMAN mantém-se como farol da negritude — conceito que coloca a cultura negra no centro da história universal.
FESMAN: As Raízes da Negritude
Léopold Sédar Senghor, poeta e primeiro presidente do Senegal, concebeu o FESMAN como um palco físico para a “négritude” — movimento literário e filosófico que fundou nos anos 1930 com Aimé Césaire (Martinica) e Léon-Gontran Damas (Guiana Francesa). A ideia era clara: usar a arte africana não como curiosidade étnica, mas como resposta intelectual ao racismo ocidental.
“A emoção é negra, a razão é helena”.
Defendia Senghor, argumentando que a estética africana, com sua oralidade e ritmo, oferecia uma visão de mundo completa. O financiamento de 8 milhões de dólares (equivalente a 75 milhões hoje) veio da UNESCO e de governos como o francês, gerando a controvérsia. Por causa da participação da França, vários críticos acusaram o festival de ser um “neocolonialismo cultural”.
Apesar disso, as obras erguidas — como o Théâtre Nacional Daniel Sorano, com a sua fachada em forma de máscara kanaga — tornaram-se símbolos da arquitectura pan-africana. A primeira edição (1966) misturou ícones mundiais e tradições locais.
Artistas como os jazzistas Duke Ellington e Archie Shepp ou a cantora Miriam Makeba, dividiram palcos com os griots senegaleses que narravam epopeias mandingas, enquanto Aimé Césaire recitou o “Caderno de um Retorno ao País Natal” em sessões paralelas a rituais sabar.
Porém, a euforia esbarrou em tensões políticas. Wole Soyinka, Nobel de Literatura nigeriano, criticou o festival por evitar temas como o colonialismo e denunciou a omissão do massacre de simpatizantes de Patrice Lumumba no Congo:
“Enquanto decoramos museus, soldados belgas continuam a matar em nome do cobalto”.
O seu discurso foi cortado nos jornais, mas circularam cópias clandestinas em Dakar, com a integra do discurso. A dualidade marcou o evento: de um lado, a celebração da diáspora; do outro, os silêncios incómodos.
“Celebrar a cultura sem denunciar a opressão é como dançar num funeral”.
Protestou o brasileiro Abdias do Nascimento, actor, poeta, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e activista dos direitos civis e humanos das populações negras brasileiras que foi excluído do festival, por não integrar a delegação oficial do Brasil. Senghor, pressionado com as crescentes críticas, justificou:
“A arte cura feridas que a política ainda não pôde fechar”.
Uma metáfora para um continente à procura de se curar e de ter voz própria.
Estrutura do Festival
O FESMAN divide-se em três eixos: exposições, performances e colóquios. No Musée Dynamique, máscaras dogon dividiam espaço com pinturas haitianas. No Cinema Palácio, filmes de Ousmane Sembène provocavam debates sobre identidade.
As noites pertenciam à música. Orquestras cubanas misturavam son com mbalax, enquanto o Ballet Nacional da Guiné contava histórias de resistência através de danças acrobáticas.
“Foi a primeira vez que vi África como um todo”.
Confessou o escritor nigeriano Chinua Achebe.
Na edição de 2024, realizada em Dakar e Ziguinchor, destacaram-se:
- Arte Contemporânea: Instalações de Omar Victor Diop questionaram a migração clandestina.
- Cinema: Filmes de Mati Diop e Alain Gomis dialogaram com clássicos de Ousmane Sembène.
- Música: O grupo Les Amazones d’Afrique misturou blues com tambores sabar.
Um participante anónimo resumiu:
“Aqui, um kora do Mali conversa com um berimbau brasileiro. Isso é pan-africanismo real”.
Legado, Contradições e Futuro
A edição de 2010, sob o tema “Renascimento Africano”, tentou relançar o festival. Youssou N’Dour e Wyclef Jean, atraíram 30.000 visitantes, mas vários críticos acusaram o evento de comercializar a cultura.
“Transformaram o FESMAN num safari para turistas”, lamentou o cineasta Souleymane Cissé.
O FESMAN não escapa das críticas, em todas as edições existe sempre alguma polémica. A edição de 2024, foi acusada de elitismo: as entradas, a 100 dólares, excluíram as comunidades locais.
“Transformaram a nossa cultura em produto para estrangeiros”, protestou o rapper Xuman.
Apesar disso, o legado perdura. O festival já inspirou o FESTAC na Nigéria, o MAPUTO (Mercado de Artes Performativas) em Moçambique e o AfroPunk na África do Sul, estando já confirmada para 2025, uma nova edição que se irá realizar em São Tomé e Príncipe.
Impacto Actual
A edição de 2024 atraiu 50.000 visitantes e gerou 20 milhões de dólares. Dos hotéis de luxo aos vendedores de thieboudienne (prato típico), todos lucraram.
- Turismo: 70% dos hotéis em Dakar esgotaram.
- Artesanato: Vendas de máscaras e tecidos bogolan aumentaram 300%.
- Infraestrutura: Novos pavilhões culturais foram construídos em Thiès.
Porque é Especial?
Diálogo Entre Continentes
O FESMAN é único por criar pontes entre África e a diáspora através da arte. Na edição de 2024, artistas haitianos apresentaram esculturas de metal reciclado ao lado de tecelãs moçambicanas, enquanto DJs nigerianos remisturaram batidas de capoeira brasileira.
“Aqui, um tambor de Cuba reconhece o seu primo em Angola”, disse a cantora Tété Alhinho.
Este diálogo transcende geografia: o festival incluiu debates sobre reparação histórica com académicos jamaicanos e colectivos afro-americanos. Num dos paineis, a escritora nigeriana Chimamanda Adichie destacou:
“O FESMAN prova que a diáspora não é um acidente. É um destino escolhido pela cultura”.
Arte Como Arma Política
Senghor usou o festival para desafiar estereótipos raciais. Em 1966, expôs máscaras ritualísticas dogon ao lado de pinturas cubistas de Picasso, questionando: “Quem influenciou quem?”. Em 2024, a instalação “Arquivos Queimados”, do senegalês Selly Raby Kane, recriou documentos coloniais destruídos, usando inteligência artificial.
A censura a discursos críticos, como o de Wole Soyinka em 1966, revela outra faceta: o FESMAN é um campo de batalha ideológico. “Aqui, até o silêncio é político”, afirmou o cineasta mauritano Abderrahmane Sissako, cujo filme sobre migração foi banido em 2010.
Legado Económico e Cultural
O festival injecta vida em economias locais. Em 2024, artesãos de Saint-Louis venderam 15.000 peças de joalharia tuareg, e hotéis familiares em Dakar registaram ocupação total. O governo senegalês estima que cada edição gere 1.200 empregos temporários.
Mas o legado maior é intangível: 60% dos artistas contemporâneos senegaleses citam o FESMAN como influência.
“Sem este festival, o mbalax de Youssou N’Dour nunca teria encontrado o jazz de Miles Davis”, reflete o músico Ismaël Lô.
Conclusão
O FESMAN é um espelho onde África se reinventa e se viu como centro e não como periferia. Se em 1966 questionou o colonialismo, hoje desafia a globalização homogeneizante. Quando Senghor morreu em 2001, deixou um desafio: manter viva a chama da négritude num mundo que ainda reduz a arte negra a exotismo.
Em 2023, quanto jovens senegaleses protestaram contra o franco CFA, usaram slogans cunhados nos colóquios do FESMAN. Prova de que, mesmo sendo um festival irregular, o evento já plantou sementes que nenhuma ditadura conseguiu arrancar.
Num mundo onde a arte negra ainda luta por espaços, o FESMAN lembra que, como dizia Senghor:
“A cultura é a única revolução irreversível”.
A edição de 2024 provou que, mesmo com contradições, o festival continua a ser um território livre para sonhar.
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Imagem: © 1966 FESMAN