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ToggleSexta-Feira Santa em África: A Fé e a Tradição
A Sexta-Feira Santa, dia de luto e reflexão para os Católicos, é marcada por jejuns e procissões um pouco por toda a África. Em Angola, as famílias reúnem-se para comer bacalhau e fazer orações. Na Nigéria, reencenações da Paixão de Cristo levam milhares de pessoas às ruas. O continente africano transforma de forma única e peculiar o sacrifício de Jesus em expressão cultural.
Sendo parte da Semana Santa, a data, reveste-se de simbolismo profundo em África, reflectindo a dimensão religiosa com a fusão entre o cristianismo e as tradições locais. Desde a figura de Simão de Cirene, um homem africano que esteve presente na crucificação, até pratos como o kapana namibiano, a espiritualidade ganha sabor e cor.
O Catecismo da Igreja Católica (CIC 1204) sublinha a importância de integrar a liturgia na cultura dos povos. Em África, isso traduz-se em missas com cânticos em línguas locais e rituais ancestrais adaptados. Na Tanzânia, o mandazi (bolo frito) partilha a mesa com a reflexão sobre a ressurreição.
A influência das Igrejas Africanas Independentes, também marcam a data. Estas congregações que misturam o cristianismo com práticas tradicionais, organizam vigílias e danças rituais. No Zimbabwe, os fiéis vestem trajes brancos, símbolo da pureza, enquanto no Burkina Fasso, o riz gras (arroz com carne) une as comunidades locais.
As Igrejas Católica e Protestante reforçam a ideia do jejum e da abstinência de carne vermelha nesta data. Em Angola, seguindo tradições herdadas dos missionários portugueses o bacalhau substituiu o frango e a carne de vaca. Já na África do Sul, os pãezinhos com cruz (hot cross buns) são consumidos desde o nascer do sol.
Raízes da Fé

A Sexta-Feira Santa em África remonta à presença de Simão de Cirene, citado nos Evangelhos como ajudante de Jesus no caminho do Calvário. Natural da Líbia, a sua representação como homem negro nas artes cristãs africanas reforça a ligação do continente com a Paixão.
Angola
A Sexta-Feira Santa angolana é marcada por um jejum rigoroso, herança dos missionários portugueses que chegaram à região no século XV. Nas províncias de Luanda e de Benguela, as famílias preparam o calulu de peixe seco, prato que mistura quiabo, óleo de palma e folhas de mandioca, outros comem o bacalhau, uma importação do colonialismo português.
Mas a tradição vai além dos pratos: nas missas, os coros cantam hinos em kimbundu, adaptando melodias europeias a ritmos locais como o semba.
Nas zonas rurais, o dia é também de reflexão sobre o passado colonial. Em Benguela, os grupos comunitários organizam debates após a missa, ligando o sacrifício de Cristo à resistência anticolonial, afirmação reforçada pelos líderes religiosos amgolanos, para quem Jesus foi o primeiro mártir da liberdade dos povos oprimidos.
Moçambique
Em Moçambique, a Sexta-Feira Santa é tempo de silêncio e oração. Muita gente evita os trabalhos manuais, dedicando-se à oração e à leitura da Bíblia. À noite, as famílias partilham a coca, o pão doce de origem catalã, evidenciando a herança colonial transformada. A tradição da coca, pão doce com anis, remonta às freiras catalãs do século XVII, mas hoje leva coco ralado, um ingrediente local.
Em Maputo, o toque dos sinos é proibido entre as 15h (hora da morte de Cristo) e o pôr-do-sol. Nas ruas de pedra da Ilha de Moçambique, os fiéis caminham descalços, carregando velas envoltas em tecido de capulana.
Na província de Nampula, as comunidades macua realizam o mapiko noturno: danças mascaradas que recriam o julgamento de Jesus, misturando passagens bíblicas com mitos locais sobre a criação do mundo.
África do Sul
Os hot cross buns sul-africanos ganham um sabor único com especiarias rooibos e mel de acácia. Na Cidade do Cabo, as padarias muçulmanas participam na tradição, reflectindo a diversidade religiosa. Já nas zonas rurais do KwaZulu-Natal, o ritual de purificação nos rios inclui oferendas de milho aos antepassados.
A Igreja Zionista da África do Sul incorpora rituais de purificação nas festividades: os fiéis banham-se nos rios, simbolizando o lavar dos pecados, antes de participarem em cerimónias ao ar livre e escrevem os seus pecados em folhas de bananeira que são queimadas após o banho ritual, uma prática que é descrita como a maneira de limparem a alma, tal como Cristo limpou os pecados.
Nigéria
Na Nigéria, em Igboland, os mbari (artistas tradicionais) esculpem cruzes em ébano, usadas nas procissões, enquanto as encenações públicas da Via Sacra atraem multidões e transformam cidades como Lagos e Enugu em palcos a céu aberto.
Homens vestidos como soldados romanos montam cavalos de madeira, outros carregam cruzes e as mulheres, carregam potes de barro, simbolizando as lágrimas de Maria, enquanto entoando cânticos em iorubá ou igbo. Estas encenações, muitas vezes acompanhadas de danças, reflectem a teatralidade própria das várias culturas locais.
A Igreja Anglicana nigeriana inova ao incluir danças ekombi, típicas do povo efik, nas cerimónias, uma prática que os pastores locais definem como oração em movimento. À noite, as famílias partilham moin moin (bolo de feijão) em vez de carne, mantendo o jejum com sabores locais.
Zimbabwe
O branco dos trajes no Zimbabwe não é casual: representa tanto a pureza cristã quanto os espíritos vadzimu na tradição shona. Em Harare, os fiéis bordam cruzes em tecidos ntsuku tradicionais, vendidos nas feiras da semana anterior.
Em algumas aldeias de Mashonaland, o vinho da comunhão é substituído por mukumbi (cerveja de palma) nas missas, uma prática defendida pelos padres locais que argumentam que Cristo usou o que à mão tinha enquanto eles usam o que terra lhes dá.
Burkina Fasso
O riz gras burkinabé na Sexta-Feira Santa é mais do que uma refeição: cada ingrediente tem um simbolismo próprio. A carne representa o sacrifício, o tomate o sangue de Cristo e o pimento a paixão. Em Ouagadougou, as cozinheiras rezam em mooré enquanto preparam o prato, invocando a bênçãos para as colheitas.
Nas aldeias mossi, os jovens realizam a dança das enxadas antes da missa, para se lembrarem de que Cristo foi enterrado como semente, para renascer, gesto que une agricultura e fé, os pilares da vida rural.
Quénia
No condado de Turkana, a Sexta-Feira Santa transforma-se em acto de resistência. Os fiéis caminham 20 km até igrejas de madeira, carregando baldes de água para os partilhar e fazem-se colectas especiais para ajudar as famílias afectadas pela seca, unindo caridade e espiritualidade.
A teologia da libertação também encontra força nesta época religiosa, com sermões que ligam o sofrimento de Cristo às lutas contemporâneas contra a pobreza, comparando o deserto ao Calvário numa afirmação sentida de que Jesus entende a sede do povo.
Em Nairobi, o coro da catedral canta salmos em sheng (gíria urbana), acompanhado por tambores kiganda e as colectas do missal revertem para se fazerem poços artesianos, ligando directamente a espiritualidade à sobrevivência.
Botswana
No Botswana, os grupos locais organizam caminhadas no deserto do Kalahari e partem à noite rumo a igrejas remotas, guiados pelo Cruzeiro do Sul. A tradição, chamada tsamaya (caminhar), recria a fuga para o Egipto. Na caminhada, leva-se bogobe (mingau) para alimentar os viajantes encontrados no caminho – acto visto como caridade sagrada.
Zâmbia
Na Zâmbia, a data também serve para reforçar os laços comunitários. O munkoyo, bebida de milho fermentado, é partilhado após as missas, servido em cabaças decoradas com cruzes. Nas aldeias bemba, despeja-se um pouco no chão antes de beber, honrando os antepassados, gesto que simboliza a comunhão com os que já ressuscitaram.
Cultura e Celebração

A gastronomia ocupa lugar central nas celebrações. Na Namíbia, o kapana (carne grelhada) é temperado com especiarias locais e servido em bancas de rua. Já na Tanzânia, o mandazi (semelhante a um donut) adoça o luto simbólico pela morte de Cristo.
Ovos decorados, herança de tradições africanas milenares, são presentes comuns. No sul do continente, ovos de avestruz pintados à mão simbolizam vida nova, ligando a ressurreição de Jesus a mitos locais sobre fertilidade. Curiosamente, apesar dos ovos coloridos, o coelho da Páscoa é quase inexistente nestas culturas.
Em Angola, as ruas enchem-se de procissões solenes. Os fiéis carregam imagens de Cristo crucificado, acompanhados por corais que cantam em umbundu ou kimbundu. Após a missa, as famílias reúnem-se para o calulu de peixe, prato que substitui a carne vermelha.
No Burkina Fasso, a Sexta-Feira Santa coincide com ritos ancestrais de colheita. As comunidades oferecem cereais aos antepassados, pedindo protecção, antes de participarem nas cerimónias cristãs. Esta dualidade é vista como complementar, não contraditória.
As Igrejas Independentes, como a Kimbanguista (RDC), criaram liturgias próprias. Nelas, a Paixão de Cristo é narrada através de danças tradicionais e os sermões destacam a resistência contra a opressão colonial, ligando-a ao sacrifício de Jesus.
Na África do Sul, as comunidades urbanas realizando braais (churrascos) após o jejum. A carne, geralmente evitada na Sexta Santa, é substituída por peixe defumado, enquanto nos bairros são cantados hinos em zulu ou xhosa.
A música sacra ganha ritmos locais. No Ghana, tambores djembe acompanham os cânticos da Paixão, enquanto em Cabo Verde, a morna é adaptada para letras religiosas. Esta fusão artística ilustra a apropriação africana do mistério cristão.
Quem Foi Simão de Cirene?

Simão de Cirene não é um apêndice na Paixão de Cristo, é uma testemunha única de que a redenção é uma obra colectiva. Na Páscoa africana, a sua memória inspira celebrações onde o resgate da dignidade humana se mistura ao mistério da ressurreição. Ao carregar a cruz no Cálvário, ele carregou consigo a esperança de um continente que vê, na Cruz de Cristo, a promessa de uma renovação africana.
O Homem que Carregou a Cruz
Simão de Cirene surge nos Evangelhos como uma figura crucial na Paixão de Cristo. Citado em Mateus (27,32), Marcos (15,21) e Lucas (23,26), era um judeu da cidade de Cirene, antiga colónia grega no actual leste da Líbia.
Os textos bíblicos relatam que, ao passar pelo local, soldados romanos o obrigaram a carregar a cruz de Jesus rumo ao Gólgota. Marcos detalha ainda ser “pai de Alexandre e Rufo”, pormenor que sugere ligações com comunidades cristãs primitivas.
A acção de Simão transcende o gesto físico. Ao aceitar o fardo, tornou-se símbolo universal de solidariedade no sofrimento. Para África, porém, o seu papel ganha contornos identitários.
Cirene, integrada ao Império Romano, era habitada por judeus helenizados, gregos e povos africanos. A miscigenação étnica da região torna plausível que Simão tivesse traços físicos ou ascendência africana, facto que reforça a espiritualidade do continente.
A Cidade de Cirene
A cidade de Cirene, hoje apenas ruínas em Shahhat (Líbia), era o centro intelectual e agrícola do Norte de África. Foi fundada por gregos no século VII a.C. e abrigava uma das maiores comunidades judaicas da Diáspora. Esta convergência cultural explica a presença de Simão em Jerusalém durante a Páscoa judaica: como peregrino, cumpria as obrigações religiosas quando foi interceptado pela história.
Para os teólogos africanos, a escolha divina de um homem ligado a África não é acaso. O Papa João Paulo II referiu que “a Providência quis que África estivesse presente na Paixão através de Simão”. Esta interpretação transforma-o em ícone da participação do continente no núcleo da narrativa cristã, quebrando visões eurocêntricas da salvação.
Símbolo da África Pascal
Na arte sacra africana, Simão é retractado como um homem negro, de trajes simples e expressão serena. Esta representação, comum em igrejas de Angola ao Quénia, não é um mero anacronismo: é uma afirmação teológica. Ao carregar a cruz, Simão personifica a África que partilha o fardo de Cristo, tornando-se co-participante na redenção.
Durante a Sexta-Feira Santa, os sermões em países como a Nigéria e a RDC destacam que “a cruz teve um dono africano”. Esta ideia alimenta narrativas de libertação, ligando o sofrimento de Jesus às lutas contra escravidão, colonialismo e pobreza. Em missas angolanas, cita-se Simão para exortar os fiéis a “carregarem as cruzes uns dos outros”, numa ética comunitária típica das culturas bantu.
Legado na Liturgia
A figura de Simão influencia práticas pascais únicas. No Zimbabwe, fiéis reproduzem o trajecto do Calvário carregando troncos, enquanto no Mali, artesãos esculpem cruzes com motivos africanos em sua homenagem. Na Etiópia, a Igreja Ortodoxa Tewahedo inclui orações em ge’ez que o celebram como “irmão de sangue do Cordeiro”.
A sua importância ultrapassa o ritual. Num continente onde o cristianismo convive com tradições ancestrais, Simão de Cirene personifica a síntese entre a fé importada e as raízes locais. Ajudar Cristo não como discípulo, mas como estrangeiro coagido, reflecte a experiência africana de adoptar o cristianismo sob pressão colonial, para depois recriá-lo em moldes próprios.
Conclusão
A Sexta-Feira Santa em África é um mosaico de fé e identidade. Dos jejuns angolanos às encenações nigerianas, cada gesto reflecte uma espiritualidade enraizada na cultura local. A figura de Simão de Cirene permanece um símbolo de uma África presente no coração do cristianismo.
As celebrações mostram como o continente reinterpreta o sagrado sem abandonar as suas raízes. Seja através da comida, da música ou dos ritos, a Sexta-Feira Santa africana é prova viva de que a fé se renova na diversidade.
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Imagem: © 2025 Anastácio Sasembele