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ToggleA Arte do Lixo: Mudungaze e as Máscaras que Contam Histórias
Conheces os artistas africanos que transformam lixo em arte? Não? Então prepara-te para conhecer Mudungaze Dinguiraye e descobrir um dos movimentos criativos mais surpreendentes e inspiradores do continente. Num mundo onde o consumo excessivo e o desperdício crescem a olhos vistos, há vozes em África que encontram beleza onde outros só vêem abandono.
Com uma mistura única de tradição, inovação e consciência ambiental, estes artistas reciclam metais, plásticos, tecidos, objectos abandonados, restos de tecnologia e até armas, dando-lhes uma segunda vida sob a forma de esculturas, instalações e obras de arte que contam histórias poderosas.
Hoje iniciamos uma nova série de 17 artigos, desta vez dedicada a estes criadores visionários que não só resgatam materiais esquecidos, como também reinventam a forma de pensar sobre a arte, a sustentabilidade e o futuro do planeta. Cada peça é uma prova de resistência, criatividade e ligação às comunidades, mostrando que daquilo que parecia perdido pode nascer algo belo e transformador.
Se procuras inspiração, inovação e uma perspectiva diferente sobre o que a arte pode ser, não percas esta viagem. Vais conhecer artistas que desafiam os limites do possível e que fazem de África um palco vibrante da arte contemporânea feita a partir do inesperado: o lixo.
Quando o Lixo Ganha Voz

A partir dum amontoado de lixo, o artista moçambicano Mudungaze Dinguiraye, dá nova vida ao que muitos consideram desperdício. Cabos, latas, ferramentas enferrujadas e fragmentos de metal transformam-se em máscaras criativas e invulgares que evocam a tradição africana, mas revestidas de uma estética contemporânea.
Nascido e criado entre as ruas movimentadas de Maputo, onde a criatividade e a necessidade se encontram diariamente, numa cidade que é um palco onde o contraste entre a riqueza cultural e os desafios sociais se evidencia em cada esquina, aprendeu a olhar para o lixo como algo mais do que desperdício: começou a ve-lo como símbolo da memória colectiva.
Desde cedo, sentiu que as máscaras tradicionais africanas, carregadas de espiritualidade e de ligação aos ancestrais, poderiam ganhar uma nova vida se fossem reinventadas a partir de materiais modernos. Essa intuição transformou-se na sua assinatura artística: máscaras esculpidas a partir de lixo, capazes de unir tradição e contemporaneidade numa só obra.
Para Mudungaze, cada peça representa um ciclo de renascimento, em que o que parecia condenado ao desperdício ressurge como arte e narrativa cultural. Desde cedo que ele cultivou o hábito de recolher materiais descartados, sem imaginar que desse gesto nasceria um universo criativo.
“Sempre tive o hobby de fazer colecções de coisas”.
“A partir dessas colecções de desperdício, comecei a criar a ideia de uma máscara africana, mas contemporânea, porque chama atenção”.
“São objectos do quotidiano que ganham uma nova vida e voltam ao ciclo”.
A sua arte vai além da estética decorativa. Cada máscara carrega histórias e mensagens profundas, como a importância de olhar para os materiais recicláveis não apenas como restos sem valor, mas como matérias-primas preciosas que podem ser reintegradas ao processo produtivo. Para o artista, esta visão é também uma forma de consciência ambiental.
A Máscara Como Símbolo
A inspiração pelas máscaras surgiu da forte ligação de Mudungaze às artes performativas, sobretudo à dança africana com máscaras. Essa relação despertou-lhe uma percepção singular sobre a ligação entre o mundo humano e o mundo espiritual. Para ele, a máscara não é apenas um objecto estético, é um mediador entre dimensões, um elo entre tradição e modernidade, entre o visível e o invisível.
Prefere identificar-se não como artista plástico, mas sim como um “artista elástico”, expressão que usa para denunciar a fluidez da sua prática artística: mistura de escultura, performance, instalação, comunicação, imagem, memória e estética urbana. Esse termo sublinha a sua recusa de limites rígidos entre formatos, géneros ou expectativas exteriores.
As máscaras são muito mais do que ornamentos ou peças decorativas. Na tradição africana, elas são veículos espirituais, utilizadas em rituais de iniciação, celebrações comunitárias e cerimónias que evocam a ligação entre os vivos e os mortos. Mudungaze compreendeu este legado e decidiu respeitá-lo, mas actualizá-lo.
As suas máscaras feitas de ferro, latas e outros restos urbanos, evocam o passado ancestral, mas reflectem o actual presente turbulento. São rostos que denunciam a poluição, o abandono e a desigualdade social, são rostos de resistência, beleza e esperança. Ao soldar peças de metal que antes estavam condenadas ao lixo, o artista dá-lhes uma nova identidade e um novo propósito.
O Processo Criativo
Cada máscara conta uma história: a do material que foi descartado, a do povo que preserva tradições e a do artista que escolhe reimaginar o futuro.
Transformar lixo em arte não é tarefa simples. Mudungaze percorre ferros-velhos, ruas e quintais à procura de pedaços esquecidos que possam ganhar nova forma. O processo de selecção já é, em si, um acto criativo: olhar para uma chapa enferrujada e ver nela o contorno de um rosto exige visão, paciência e uma sensibilidade rara.
“Eram objectos que iriam parar ao solo, contaminar o solo ou até gerar problemas maiores”.
“O metal, por exemplo, acaba por enferrujar e desaparecer com o tempo, seja na terra ou no mar”.
“Mas o plástico, esse é um desafio muito mais grave, ainda não estou preparado para falar a fundo sobre isso”.
“Sei que o próximo passo é pensar é o plástico, felizmente, sinto que a dinâmica já começou”.
Depois vem o trabalho físico. Martelos, serras e soldadores são as ferramentas com que molda o ferro e o alumínio. É um processo árduo, muitas vezes perigoso que exige força e destreza. Mas, no fim, o resultado é surpreendente: máscaras que parecem respirar que olham de volta para quem as observa e que nos obrigam a reflectir sobre a vida que damos – ou negamos – aos objectos.
O trabalho de Mudungaze não é apenas estético, é também profundamente político e ecológico. Cada máscara é um manifesto silencioso contra o desperdício e uma proposta concreta para um futuro sustentável.
O Simbolismo
Num planeta cada vez mais pequeno, onde as tradições correm o risco de se diluir, o trabalho de Mudungaze adquire uma importância ainda maior. As máscaras que cria a partir de lixo são símbolos de resistência cultural. Elas mostram que é possível reinventar a tradição sem a perder que é possível falar de ancestralidade usando os restos da modernidade.
Cada peça é, assim, uma ponte entre o passado e o futuro. A ancestralidade africana que se manifesta através das máscaras, encontra-se com os desafios actuais: lixo, poluição, desigualdade, globalização. O ferro soldado de Mudungaze transforma-se em metáfora de um continente que não se rende ao esquecimento, mas que reinventa o seu lugar no mundo com criatividade e coragem.
Trajectória e Formação

Hélder Silvano Manhique, nome de nascimento de Mudungaze, nasceu em Maputo a 24 de Novembro de 1980. A sua paixão pelas artes e pela literatura manifestou-se cedo. Formou-se no curso médio de Documentação no Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa (CIDOC) e mais tarde estudou Economia e Educação na Universidade Pedagógica.
No exercício profissional, trabalhou na Companhia Nacional de Canto e Dança (CNCD), onde integrou o sector de Documentação e Pesquisa, passando também pelo Departamento de Produção e Marketing. Neste período co-criou um Gabinete de Comunicação e Imagem.
Foi responsável pelo Arquivo Audiovisual e pela documentação de actuações, dentro e fora de Moçambique, além de coordenador logístico de espectáculos. Em paralelo, mantinha viva a sua paixão por coleccionar objectos descartados. Nos seus trabalhos actuais, transforma restos de metal e lixo em esculturas e máscaras. É autodidacta no uso destes materiais no contexto artístico.
Reconhecimento Internacional
Com o tempo, o trabalho de Mudungaze começou a ultrapassar fronteiras. O que começou como algo local ganhou dimensão internacional. As suas máscaras já foram expostas em galerias africanas e europeias e atraíram a atenção de curadores e coleccionadores que procuram arte que vá além da superfície decorativa.
Mais do que a beleza formal, os críticos reconhecem-lhe uma voz autêntica, capaz de traduzir em metal reciclado as tensões do presente: urbanização acelerada, crise ambiental, perda de identidade cultural. O artista conseguiu o que poucos alcançam: transformar resíduos em símbolos universais que dialogam com qualquer espectador, independentemente da sua origem.
Para Mudungaze, a arte não termina na galeria, acredita que o impacto do seu trabalho deve chegar às comunidades, especialmente às novas gerações. Muitas vezes organiza oficinas e encontros com jovens, mostrando-lhes como é possível reutilizar materiais e criar algo significativo a partir do que parecia inútil.
Nestes momentos, a máscara deixa de ser apenas uma obra de arte e torna-se numa ferramenta pedagógica. É uma forma de ensinar que a sustentabilidade não é apenas teoria, é uma prática possível e criativa. O artista procura inspirar crianças e adolescentes a olharem para o lixo das suas comunidades com outros olhos – não como um fardo, mas como uma oportunidade.
Este lado educativo do seu trabalho interliga-se com um movimento mais amplo que atravessa todo o continente africano: artistas que, através da reciclagem, promovem consciência ambiental e reforçam a ligação entre cultura e responsabilidade social.
Infelizmente, apesar do reconhecimento internacional, o mercado interno não reconhece o seu trabalho: até há pouco tempo, apenas um moçambicano — o escritor Mia Couto — comprou uma das suas máscaras. Provando que existe um vazio na valorização da indústria cultural em Moçambique.
Mensagens Sociais e Ambientais
A obra de Mudungaze vai muito além da beleza formal: transporta mensagens sociais fortes. Ele convida o público a repensar os hábitos de consumo, desperdício e de dar valor ao ambiente. A reciclagem deixa de ser um mero gesto ecológico para se tornar uma narrativa identitária.
Cada pedaço de ferro, cada fragmento de metal ou latas antigas, transformam-se em rostos, expressões, máscaras que falam de memória, ancestralidade, da vida urbana e dos desafios do quotidiano. No âmbito da exposição “Do outro lado”, propõe uma reflexão universal sobre a superação, amizade, família e reconhecimento das coisas que antes não valorizávamos, à luz da pandemia da COVID-19.
Também chama a atenção para o desafio gravíssimo do plástico — um material que, segundo ele, “contamina solos, mares” e cujos efeitos a longo prazo ainda não são totalmente atentados. Ele acredita que a dinâmica de consciencialização já começou, mas alerta que ainda há muito a fazer.
A escolha do museu de Mafalala, situado no bairro de Maputo do mesmo nome, para realizar a sua primeira residência artística e expor algumas das suas obras, não foi feita ao acaso. Mafalala é um espaço de história de um povo vibrante, mas também de privação e margens sociais. Ali, transformar desperdício em arte é mais do que uma escolha estética, é um acto político e de resistência cultural.
A presença da sua arte nesse contexto dá-lhe autenticidade, coerência e torna a arte acessível, visceral, próxima das pessoas. Além disso, Mudungaze procura sensibilizar as gerações mais novas, mostrando que a arte pode e deve fazer parte da vida quotidiana e não ser algo somente para a elite ou para espaços fechados.
Ele sonha com uma vila artística em Marracuene, para inserir crianças num espaço criativo e lúdico, onde a arte seja parte do seu crescimento desde cedo.
Reflexão Final
Moçambique enfrenta dificuldades sérias de gestão de resíduos sólidos, sobretudo nas grandes cidades como Maputo e Beira. A recolha é irregular, grande parte do lixo acaba em lixeiras a céu aberto ou nos rios e o plástico é um problema crescente. Este panorama reforça a relevância da obra de Mudungaze que mostra que o lixo pode ser mais do que um “fardo”, pode ser matéria-prima e discurso cultural.
Mudungaze mostra-nos que a arte tem força para transformar o que muitos rejeitam. Nas suas máscaras feitas de metal, latas e lixo, existe muito mais do que o objecto visual: há história, memória, identidade, protesto silencioso e esperança.
Ele conflui tradição e modernidade, espírito ancestral e renovação ecológica, convidando o público a olhar para o lixo com outros olhos: não como fim, mas como início de algo novo. No fim, a sua obra é um espelho: reflecte não apenas o artista, mas cada espectador.
Pergunta-se: que parte de cultura deixamos morrer? Que privilégios damos ao consumo versus preservação? O que realmente valorizamos? Mudungaze não se limita a criar arte. Ele constrói pontes — entre passado e futuro, entre natureza e cidade, entre o visível e o invisível. E talvez, por isso, a sua arte seja tão necessária: num mundo que esgota recursos, ele reaproveita, dá significado e dignidade.
Conclusão
Mudungaze Dinguiraye prova que a arte pode nascer do improvável e que o desperdício, afinal, não é um ponto final, mas um recomeço. As suas máscaras e exposições desafiam percepções, questionam prioridades e convidam à reflexão individual e colectiva.
Mais importante do que isso, demonstram que arte, tradição e sustentabilidade não são domínios separados: podem conviver, reforçar-se e abrir espaço para novos padrões culturais. Seja em Maputo, Marracuene ou além-fronteiras, o seu trabalho inspira: mostra que o futuro pode nascer do que hoje rejeitamos. Que a consciência ambiental, a valorização da cultura e a estética podem caminhar juntas.
No fim, a sua obra é um convite: olhar para o que rejeitamos com outros olhos e descobrir, talvez que no meio do lixo pode estar escondida a beleza que redefine o nosso futuro. Transformar lixo em arte, também transformamos a forma como nos relacionamos com o mundo, lançando um alerta ecológico cada vez mais importante.
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Imagem: © 2025 Francisco Lopes-Santos