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ToggleDia dos Namorados: O Vermelho Das Cinzas
O Dia dos Namorados é marcado por uma corrida às compras. Em Luanda, Lisboa ou no Rio de Janeiro, o mês de Fevereiro tinge-se de vermelho. As lojas aproveitam para “facturar forte e feio” e as vitrines exibem corações, chocolates e promoções, com produtos direccionados quase exclusivamente às mulheres, mostrando a realidade de que por trás da festa está uma visão nada romântica.
Partindo inicialmente de uma ideia sobre amor e paixão, tendo origem no mito de São Valentim, o Dia dos Namorados tornou-se nos dias de hoje, um palco de pressões financeiras, desigualdades de género e exclusão social.
“A data já não é sobre amor, é sobre obrigação” – afirmou Carla Mendes, uma socióloga moçambicana.
Cleusa Yange, proprietária da loja Sê Tu Mesma, critica a ironia da data, em que a comercialização, segundo ela, se sobrepõe ao sentido original de celebrar o amor.
“Sei que é o Dia dos Namorados, se tivesse namorado seria mais um dia para estar com ele, mas vejo que a data perdeu o verdadeiro significado”.
Em Angola, onde a tradição de dar presentes é intensa, os homens sentem-se na obrigação de gastar o dinheiro que não tem para satisfazer as companheiras, mas no fundo desabafam:
“Se não compro uma prenda, sou chamado de ‘mesquinho’. Mas onde está a prenda dela para mim?”
A tradição de dar presentes nesta data, embora nobre, tornou-se unilateral. Os homens são pressionados a gastar, enquanto as mulheres são incentivadas a esperar os mimos. Um inquérito de 2024 revelou que os homens gastam dinheiro nesta data em flores, chocolates ou almoços/jantares. A pergunta que fica é: por que razão continuam os homens a ser os únicos provedores materiais do romantismo?
A Máquina Comercial do Amor
O Dia dos Namorados movimenta biliões de dólares globalmente. Na CPLP, o comércio aproveita-se de estereótipos para vender. Em Angola, a Feira do Xyami Shopping em Luanda oferece “pacotes românticos” desde Kz 15.000 (jantar para dois) até Kz 500.000 (viagens a roteiros turísticos).
A pressão para dar presentes às mulheres nesta data, está neste momento presente em todo o mundo, mas assume contornos únicos na CPLP. No Brasil, 68% dos homens sentem-se obrigados a gastar mais do que podem, segundo um estudo de 2024.
Em Portugal, lojas como a Coração de Ouro registam vendas 300% superiores ao habitua, no Mês de Fevereiro. Já em Moçambique, a Feira do Amor de Maputo atrai milhares de casais, mas poucos questionam: “Por que só os homens compram?”. A resposta está em normas sociais que atravessam continentes.
“Os homens são 80% dos compradores. Muitos pedem empréstimos para pagar”.
Revela Maria Sousa, gestora do evento. No Brasil, o sector de jóias tem um pico de vendas de 40% neste período, segundo a Associação Brasileira de Joalheiros. As campanhas publicitárias reforçam papéis de género ultrapassados. Anúncios de perfumes, como os da marca Puro Amor, mostram mulheres a receber prendas de homens sorridentes.
“Estes anúncios criam a ideia de que o amor se mede pelo preço da embalagem”.
Critica Teresa Paulo, economista angolana. Em Cabo Verde, uma análise de 100 anúncios de 2024 mostrou que 92% dirigiam-se a homens como compradores. A excepção é a marca Arco-Íris, que lançou uma campanha com casais do mesmo sexo, mas enfrentou boicotes de grupos conservadores.
Em países com economias frágeis, como a Guiné-Bissau ou São Tomé, o custo das celebrações é insustentável. Mamadu Sane, vendedor em Bissau, explicou:
“Um jantar romântico custa 75.000 XOF, quase metade do meu salário. Mas se não convido a minha namorada, ela pensa que não a amo”.
A solução para muitos é o crédito. Em Angola, 35% das dívidas pessoais são contraídas em Fevereiro, segundo o Banco Nacional de Angola. A tradição de “cobrar prendas” após o casamento também é problemática. A ideia de que “uma mulher, mesmo casada, não deixa de ser namorada” legitima exigências unilaterais, ignorando que o namoro evolui para compromissos mútuos.
“Nas comunidades rurais angolanas, não se falava disto há 30 anos. Agora, até nas kitandas se vêem cartões”.
Explica o historiador angolano Manuel Bento. A adopção não foi acompanhada por uma reflexão crítica, permitindo que o sexismo e o consumismo moldassem as celebrações.
“O acto de dar prendas deveria ser espontâneo, não uma obrigação de género” – Francisco Lopes-Santos.
Homens Sob Pressão
![Imagem © 2022 Shutterstock (20250214) Dia dos Namorados O Vermelho Das Cinzas B](https://live.staticflickr.com/65535/54325475662_ed570de876_b.jpg)
“Se Não Gastas, É Porque Não Me Amas”.
A frase repete-se de São Paulo a Benguela. Os homens são pressionados a provar o seu amor através de bens materiais.
“É uma prova pública: se não dás uma prenda cara, és menos homem”.
Afirmou o psicólogo português Rui Costa. Em Moçambique, um inquérito com 500 homens revelou que 73% se sentem julgados pelas redes sociais se não publicarem fotos com prendas caras. A obrigação de gastar gera stress. No Brasil, uma pesquisa da Universidade de São Paulo (2024) associou o Dia dos Namorados a picos de ansiedade masculina.
“Muitos pacientes relatam medo de desiludir a parceira”.
Confirma a psicóloga clínica Ana Lúcia Ferreira. Em Angola, o suicídio de um jovem em Luanda, após não poder comprar um telemóvel de presente para oferecer à namorada, gerou debates nas redes sociais sobre a toxicidade das expectativas.
A tradição de dar prendas à esposa no Dia Dos Namorados, também perpetua desigualdades. Em algumas comunidades rurais angolanas, é esperado que os maridos ofereçam panos ou cabritos. Já nas cidades, presentes como smartphones ou viagens são comuns.
“Se não cumpro, a minha família diz que sou um mau marido”, desabafou um marido.
“O casamento não devia ser uma continuação do namoro, mas muitos homens sentem que essa cobrança nunca acaba”, explicou a antropóloga Fátima Camará.
O Dia dos Namorados, originalmente uma celebração do amor, transformou-se numa máquina de consumo. As pessoas confundem amor com gastar dinheiro. É triste ver como se perde o essencial. A data que devia unir, acaba por dividir: homens são pressionados a comprar, mulheres a esperar e, os casais LGBTQ+, são ignorados.
LGBTQ+: Amor à Margem
![Imagem © DR (20250214) Dia dos Namorados O Vermelho Das Cinzas](https://live.staticflickr.com/65535/54326377881_9ae99b7c47_b.jpg)
“Temos clientes gays, mas não podemos alienar outros compradores”.
Justificou um funcionário anónimo. Em Moçambique, onde a homossexualidade foi descriminalizada em 2015, as campanhas publicitárias ainda evitam representar relações LGBTQ+ e no Brasil, apenas 5% das campanhas publicitárias em 2024, incluíram casais do mesmo sexo. Este silêncio comercial reforça a ideia de que apenas certos amores merecem celebração
“O amor é universal, mas o marketing não reflecte isso”, critica João Matos, um activista dos direitos humanos.
Em países onde a homossexualidade é criminalizada ou estigmatizada, celebrar a data é perigoso. Em Angola, apesar da descriminalização em 2021, casais homossexuais evitam demonstrações públicas.
Algumas iniciativas desafiam a exclusão. Em Cabo Verde, a loja Arco-Íris lançou uma linha de pulseiras com as cores do arco-íris e cartões com mensagens neutras: “Amor é amor, sem rótulos”. A iniciativa foi elogiada, mas ainda assim é minoritária.
As plataformas digitais acabam por se demonstrar a solução e tornaram-se refúgios seguros. Em Moçambique, a hashtag #AmorNãoTemGénero tornou-se viral em 2024, com vários casais a partilharem as suas histórias. Contudo, o ambiente online também é hostil: 60% dos posts inclusivos receberam comentários negativos, segundo a ONG Diversidade CPLP.
Experiências vs. Objectos
![Imagem © DR (20250214) Dia dos Namorados O Vermelho Das Cinzas](https://live.staticflickr.com/65535/54326599719_a6d363c262_b.jpg)
“Em 2024, distribuímos comida a sem-abrigos. Foi o nosso melhor Dia dos Namorados”.
Marcas que ousam incluir diversidade colhem benefícios. A Arco-Íris de Cabo Verde viu as vendas subirem 30% após lançar produtos LGBTQ+. “O mercado está a mudar, e quem não se adaptar ficará para trás”, alertou o consultor de marketing brasileiro Rodrigo Almeida.
Escolas em Angola e Moçambique começaram a incluir debates sobre o Dia dos Namorados. “Ensinamos que o amor não tem género e que dar presentes é opcional”, explica a professora angolana Dulce Maria. Em São Tomé, as crianças criam cartões para dar a familiares e a amigos, não apenas a namorados.
Vários activistas pressionam os governos a regularem a publicidade sexista. Em Portugal, um projecto de lei propôs multar marcas que excluam casais LGBTQ+ ou reforcem estereótipos. “É um passo pequeno, mas necessário”, defende a deputada Isabel Cardoso.
Mas Como Surgiu o Dia?
A origem do Dia dos Namorados é obscura, mas poderá ter começado com uma de duas tradições distintas: a história de São Valentim (a mais conhecida) e a festa romana da Lupercália.
A versão mais conhecida, envolve São Valentim, um bispo que desobedeceu ao imperador Cláudio II ao celebrar casamentos em segredo, contrariando a proibição imposta para que os soldados não se casassem para não criarem laços familiares.
Descoberto, foi preso e condenado à morte. Na prisão, apaixonou-se pela filha cega do carcereiro, quando foi para o cadafalso, O Bispo Valentim entregou à jovem uma carta de amor onde se despedia dela, assinando “do teu Valentim”. Milagrosamente, a jovem cega recupera a visão, na altura em que o Bispo foi morto, sendo capaz de ler a carta proclamando Valentim como seu namorado.
Após ser canonizado, o dia 14 de Fevereiro, data da sua execução, foi escolhido para celebrar a sua memória, mas a Igreja Católica removeu a sua comemoração do calendário litúrgico em 1969 devido à falta de comprovação histórica sobre a sua existência.
A Lupercalia, era uma festa romana de purificação e fertilidade que ocorria em Fevereiro. No dia 14, véspera das festividades principais, sacerdotes realizavam rituais que envolviam golpear mulheres com tiras de couro para aumentar a sua fertilidade. O Papa Gelásio I tentou abolir o festival, ridicularizando-o e instituiu o dia 14 de Fevereiro como a Festa da Purificação da Bem-Aventurada Virgem Maria.
Curiosamente, foi o Papa Gelásio I que canonizou São Valentim e lhe atribuiu o dia de 14 de Fevereiro para a sua comemoração no calendário litúrgico tradicional. Isto invalida a história de o Dia dos Namorados ter origem em São Valentim, pois ávido que Gelásio I estava, para acabar com as festividades da Lupercalia, claramente teria aproveitado São Valentim para eliminar essas festividades.
No entanto, tal não aconteceu, pois nessa altura não existia nenhum tipo de associação entre São Valentim e o Dia dos Namorados, o que acaba por ser irónico, pois é esta data que os “namorados” acreditam estar a celebrar.
Na realidade, o Dia dos Namorados, surge pela primeira vez nos Estados Unidos da América (EUA), em 1840, como Saint Valentine’s Day, criado por Esther Howland a 14 de Fevereiro e que, com uma forte campanha publicitária, usando a história de São Valentim como fundo, conseguiu vender 5.000 dólares em cartões comemorativos, uma quantia elevada na época.
A data, ganha força, novamente nos EUA, em 1950, com novas campanhas de marketing, passando a ser comemorada a partir dai sem interrupção. Em África, a data ganhou força nas últimas décadas, importada pela globalização.
Conclusão
O Amor Não Cabe Num Coração de Plástico
O Dia dos Namorados precisa de uma reinvenção urgente. A data que deveria celebrar ligações e psixões genuínas, transformou-se num termómetro de desigualdades. O Amor não se compra, constrói-se.
Seja através de campanhas inclusivas, diálogos familiares ou simples gestos de reciprocidade, a mudança é possível. “Não precisamos de destruir a data, mas de a humanizar”, propõe o activista João Matos. O caminho é longo, mas, como provam algumas iniciativas em Cabo Verde, Brasil e Angola, ele já começou.
Ver Também:
14 de Fevereiro. Dia dos Namorados. Porquê?
14 de Fevereiro, não é só o Dia dos Namorados
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Imagem: © 2022 Shutterstock