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ToggleSteve Biko: 48 Anos Do Legado De Um Mártir
Faz hoje, 48 anos que Steve Biko morreu de forma brutal sob custódia policial. Presentemente, o seu nome de continua a ser lembrado na África do Sul, no resto de África e no mundo.
Símbolo de coragem, dignidade e resistência, Biko foi mais do que um activista político: foi um pensador que desafiou um sistema estruturado para negar humanidade à maioria negra e que deixou um legado imortal de luta pela autovalorizarão e pela liberdade.
Com esta data, os debates, despertam as memórias e obrigam a revisitar a história de um homem cuja vida foi breve, mas cujo impacto atravessou fronteiras, culturas e gerações. O Movimento da Consciência Negra que ele encabeçou, não representou apenas uma resposta ao apartheid, foi também um chamado profundo à libertação psicológica e espiritual de milhões de africanos.
Para Steve Biko, a luta não se limitava à confrontação política; tratava-se de devolver à população negra a confiança em si mesma, embeber de orgulho a identidade cultural africana e rejeitar de forma intransigente as narrativas impostas pelo colonialismo e pelo racismo institucional.
Hoje, quando a África do Sul ainda lida com desigualdades estruturais e o mundo enfrenta novas formas de exclusão, a mensagem de Biko mantém uma actualidade vibrante. O seu pensamento inspira fundações, centros culturais, conferências académicas e gerações de activistas que continuam a reclamar dignidade, justiça e igualdade.
A reabertura do inquérito da sua morte, anunciada pelo Ministério Público sul-africano, mostra como a história permanece inconclusa e como as feridas deixadas pelo apartheid ainda reclamam verdade e reparação.
48 anos após a sua morte, o impacto do Movimento da Consciência Negra, o martírio que o transformou em símbolo mundial, mantém o seu legado através da perpetuação da sua obra em instituições e homenagens e por fim a relevância da sua herança no século XXI.
Reabertura do Inquérito da Morte de Steve Biko

Imagem © Walter Dhladhla via Getty ImagesA justiça sul-africana decidiu reabrir o inquérito sobre as circunstâncias que rodearam a morte brutal de Steve Biko. A decisão, anunciada pela Autoridade Nacional de Acusação (NPA), surge no 48.º aniversário da sua morte, a 12 de Setembro de 1977, quando o activista tinha 30 anos.
Biko morreu em Pretória, após um mês de detenção, vítima de espancamentos que o deixaram em coma. O regime do apartheid tentou ocultar a verdade, alegando que o militante se teria ferido ao bater com a cabeça contra uma parede. Essa versão foi aceite pelo inquérito oficial de 1977 e nenhum agente foi responsabilizado.
Em 1997, durante as audiências da Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR), ex-polícias admitiram ter agredido Biko, mas o pedido de amnistia foi recusado. A CVR concluiu que os depoimentos eram falsos e não demonstraram motivação política que justificasse o assassinato. A reabertura do caso reflecte a pressão de famílias e organizações da sociedade civil que reclamam justiça por crimes da era do apartheid.
Recentemente, outras mortes de grande visibilidade foram retomadas, como a dos Cradock Four, executados em 1985 por forças de segurança. O presidente Cyril Ramaphosa ordenou investigações sobre possíveis interferências de antigos governos do ANC no apuramento de crimes cometidos durante o regime segregacionista.
A morte de Steve Biko foi mais do que um acto de violência policial: constituiu um marco que galvanizou a resistência contra o apartheid e projectou o activista como símbolo mundial da dignidade e da luta pela liberdade. Reabrir o inquérito é, para muitos, uma oportunidade de corrigir uma das mais flagrantes injustiças do passado e de reafirmar o compromisso com a memória, a verdade, a justiça e a igualdade.
A reabertura poderá trazer responsabilização, reparação simbólica e alimentar um debate público prolongado sobre memória, responsabilidade e reconciliação cívica nacional.
Quem Foi Steve Biko
Stephen Bantu Biko nasceu a 18 de Dezembro de 1946, em King William’s Town, na então União Sul-Africana. Era o terceiro filho de Mzingaye Biko, funcionário do Ministério da Justiça e de Alice Nokuzola, empregada doméstica que mais tarde se tornaria assistente de enfermagem.
Cresceu num lar humilde, onde a disciplina e a educação eram encaradas como ferramentas essenciais para enfrentar a marginalização imposta aos negros. Desde cedo, Steve Biko sentiu na pele as injustiças da segregação.
A divisão de bairros, as escolas degradadas, as restrições no acesso a serviços básicos e a constante humilhação de ser tratado como cidadão de segunda classe marcaram profundamente a sua infância. Mas o ambiente familiar deu-lhe solidez: o pai incutiu-lhe disciplina e rigor, enquanto a mãe lhe transmitiu fé, orgulho e perseverança.
Inteligente e determinado, Biko destacou-se como aluno. Porém, a sua vida escolar sofreu um abalo quando foi expulso da escola secundária Lovedale, acusado de envolvimento em actividades políticas contra o regime.
Esse episódio, longe de o desmotivar, serviu como catalisador da sua consciência. Percebeu, de forma abrupta, a natureza repressiva do Estado e consolidou a ideia de que a sua geração teria de enfrentar a injustiça sem recuos.
Depois de concluir os estudos em outras instituições, Steve Biko ingressou na Universidade de Natal, em Durban, para estudar medicina. Foi aí que começou a ganhar notoriedade como líder estudantil. Tornou-se membro da União Nacional de Estudantes Sul-Africanos (NUSAS), uma organização progressista e multirracial, mas dominada por brancos liberais.
A sua experiência na NUSAS foi reveladora. Embora a organização defendesse igualdade, não oferecia verdadeiro protagonismo aos estudantes negros. Para Biko, essa contradição era insustentável: como poderia um movimento representar os interesses da maioria oprimida sem lhe dar voz? Essa percepção levou-o a procurar alternativas que colocassem os africanos no centro da sua própria luta.
O Movimento da Consciência Negra

Imagem © DREm 1968, Steve Biko fundou a Organização de Estudantes Sul-Africanos (SASO), um movimento exclusivamente negro que viria a tornar-se o embrião do Movimento da Consciência Negra.
A SASO representava uma ruptura com as estruturas tradicionais de oposição, ao afirmar que a libertação dos negros não poderia depender da boa vontade dos brancos, mas deveria nascer de um processo autónomo de auto-afirmação.
Nesta fase, Biko começou a articular ideias que viriam a ter repercussões imensas. A sua máxima “black is beautiful” (o negro é bonito) não era uma frase de afirmação estética, era um manifesto político que desafiava séculos de estigmatização e a lógica do apartheid da inferioridade negra. Ao proclamar a beleza da negritude, Steve Biko oferecia à juventude um novo horizonte de dignidade e de confiança.
A mensagem era sentida profundamente entre os jovens que começavam a erguer-se não apenas contra as leis injustas, mas contra a ideia de que eram menos humanos. O ambiente estudantil foi, assim, a sua primeira arena de combate.
A filosofia da Consciência Negra partia de uma constatação clara: o apartheid não se limitava a dominar os negros fisicamente e politicamente; tinha também aprisionado as suas mentes. Décadas de segregação e de propaganda haviam inculcado um sentimento de inferioridade que, segundo Biko, era tão eficaz como as correntes da prisão.
Libertar a mente era, portanto, o primeiro passo para conquistar a liberdade externa. Daí surgiu a sua máxima mais célebre:
“A arma mais poderosa nas mãos do opressor é a mente do oprimido”.
Para ele, recuperar o orgulho cultural africano, valorizar a identidade negra e rejeitar a narrativa colonial eram condições prévias a qualquer transformação política duradoura.
A Expansão do Movimento
A SASO consolidou-se rapidamente como um espaço de mobilização e debate, unindo estudantes que partilhavam da mesma visão. No entanto, Steve Biko percebia que o alcance do movimento precisava de ir além dos muros universitários. A opressão atingia sobretudo os mais pobres e marginalizados e era necessário levar a mensagem de consciência às comunidades.
Assim, em 1972, foi criada a Convenção dos Povos Negros (BPC) que alargava a acção da Consciência Negra a trabalhadores, líderes comunitários e religiosos. Mais do que um movimento estudantil, a Consciência Negra tornava-se uma força social.
As iniciativas iam desde programas de alfabetização e clínicas comunitárias até projectos de apoio económico, todos concebidos para demonstrar a capacidade de organização autónoma da população negra.
Essa expansão conferiu ao movimento uma dimensão inédita. Já não se tratava apenas de contestar leis injustas, mas de reconstruir a auto-estima colectiva e criar as bases de uma sociedade em que os africanos fossem sujeitos plenos da sua história.
Repressão e Banimento
À medida que a filosofia da Consciência Negra se expandia pelas universidades e comunidades, o regime do apartheid passou a ver em Steve Biko uma ameaça existencial. Os seus discursos, simples e incisivos, despertavam o orgulho e a confiança numa juventude negra que já não aceitava ser reduzida a cidadãos de segunda classe.
Em Março de 1973, as autoridades sul-africanas decretaram o banimento de Biko. Esse instrumento jurídico visava silenciar os opositores sem julgamento formal. A partir daí, ele foi confinado a King William’s Town, proibido de participar em reuniões públicas, de falar em frente a mais de uma pessoa de cada vez e até de ser citado na imprensa.
O objectivo era isolar e neutralizar o líder. No entanto, o efeito foi o contrário: Biko continuou a influenciar os estudantes e as comunidades através de aliados que transmitiam as suas mensagens. O mito em torno da sua figura crescia, alimentado pela própria tentativa do regime de o silenciar.
Mesmo limitado pelo banimento, Steve Biko não abandonou a militância. Concentrou-se em iniciativas locais, convencido de que a luta não podia restringir-se ao plano retórico. Criou clínicas de saúde, programas de alfabetização e projectos de apoio económico em bairros negros marginalizados.
Essas acções, aparentemente assistenciais, tinham um profundo significado político: demonstravam que os africanos podiam organizar-se autonomamente, sem depender do paternalismo do Estado ou da benevolência de aliados brancos. Cada escola improvisada, cada clínica comunitária, era um acto de resistência e um passo concreto para a auto-suficiência.
A resposta do regime foi intensificar a vigilância. Os serviços secretos seguiam os seus passos, infiltravam reuniões e mantinham-no sob constante ameaça. Mas a sua mensagem já tinha ganho vida própria e espalhava-se pelas comunidades.
A Revolta no Soweto
O impacto da Consciência Negra atingiu o seu auge em 1976, com a Revolta no Soweto, um dos episódios mais marcantes da história do apartheid. O regime sul-africano decidiu impor o africanês como língua de ensino nas escolas frequentadas por alunos negros.
A medida, aparentemente técnica, tinha um propósito político claro: reforçar a dominação cultural e consolidar a ideia de inferioridade das populações negras. A juventude não aceitou em silêncio. A 16 de Junho de 1976, milhares de estudantes marcharam pacificamente no Soweto contra a decisão empunhando cartazes a exigir o direito a uma educação digna.
A resposta foi devastadora. A polícia abriu fogo contra adolescentes desarmados, transformando o protesto em massacre, matando centenas de jovens. Entre as vítimas estava Hector Pieterson, de 13 anos, cuja fotografia carregado nos braços por um colega correu o mundo tornando-se o símbolo da brutalidade do regime.
Embora Steve Biko estivesse impedido de intervir devido ao banimento em King William’s Town, a sua influência era clara. Os jovens do Soweto eram filhos da Consciência Negra: já não aceitavam a inferioridade como destino e ousaram enfrentar as armas em nome da dignidade.
A revolta abalou as estruturas do regime e revelou a força das ideias de Biko. Até então, o governo cultivava a imagem de estabilidade interna, reprimindo focos isolados e mostrou ao mundo que o apartheid era contestado por uma geração inteira.
Internamente, a repressão deixou cicatrizes, mas também fortaleceu a resistência. Externamente, a Revolta no Soweto tornou-se um ponto de viragem. A luta anti-apartheid ganhou visibilidade internacional, multiplicando pressões diplomáticas e exigências de sanções.
Para o regime, ficou evidente que, mesmo confinado, Biko era um mentor intelectual perigoso. A revolta não foi apenas uma explosão estudantil: foi a prova de que a libertação mental defendida por Steve Biko já se transformara em acção colectiva.
Prisão, Tortura e Morte

Imagem © 1977 Drum Social Histories – Baileys African History Archive – Africa Media OnlineEm Agosto de 1977, Steve Biko foi novamente detido, acusado de violar as restrições do banimento. Foi levado para Port Elizabeth, onde passou por longos interrogatórios e torturas físicas.
Os testemunhos posteriores revelaram a brutalidade do processo: espancamentos severos, privação de sono e condições degradantes de detenção. Gravemente ferido na cabeça, Biko foi transportado nu no interior de uma carrinha da policia durante mais de mil quilómetros até Pretória, sem assistência médica adequada. Morreu a 12 de Setembro de 1977, com apenas 30 anos.
O regime tentou encobrir o assassinato, alegando que Steve Biko teria morrido em resultado de uma greve de fome. Mas as autópsias independentes que foram efectuadas, desmentiram a versão oficial, revelando lesões compatíveis com espancamentos sistemáticos. A mentira governamental caiu por terra e a morte de Biko transformou-se num escândalo mundial.
O funeral de Steve Biko, realizado em King William’s Town, reuniu mais de 20 mil pessoas. Foi mais do que uma despedida: foi um acto de resistência colectiva. Líderes religiosos como o arcebispo Desmond Tutu denunciaram publicamente o crime, enquanto o mundo acompanhou com atenção redobrada.
A indignação internacional foi imediata. Organizações dos direitos humanos, como a Amnistia Internacional, condenaram o regime. Governos que até então mantinham silêncio cúmplice foram pressionados pelas suas sociedades civis a rever as suas posições. Nos EUA e no Reino Unido, surgiram movimentos estudantis e sindicais exigindo sanções contra Pretória.
A morte de Steve Biko tornou-se no símbolo incontornável da brutalidade do apartheid. A partir daquele momento, o regime passou a ser visto como insustentável, mesmo por sectores que antes relativizavam as suas práticas.
O Legado Vivo

Imagem © 1987 DRA brutalidade do assassinato de Steve Biko inspirou artistas, músicos e escritores em todo o mundo. Em 1980, o cantor britânico Peter Gabriel lançou a música “Biko” que rapidamente se transformou num hino de resistência e solidariedade.
A letra evocava a memória do activista e denunciava a violência do apartheid, levando a mensagem a públicos que até então desconheciam em profundidade a realidade sul-africana.
Na literatura e no cinema, Steve Biko foi igualmente imortalizado. O filme Cry Freedom (1987), realizado por Richard Attenborough e baseado nos escritos do jornalista Donald Woods, amigo de Biko, apresentou ao grande público internacional a história do líder da Consciência Negra e a brutalidade do sistema que o assassinou.
O impacto cultural dessas obras foi significativo, ampliando e levando a mensagem da Consciência Negra a públicos que até então desconheciam a realidade sul-africana. A memória de Steve Biko passava a viver também na música, no cinema e na literatura, multiplicando o impacto da sua luta.
Quase cinco décadas depois, o legado de Steve Biko continua a iluminar debates contemporâneos. O seu pensamento, centrado na libertação psicológica como pré-condição da liberdade política, mantém-se actual em África e além das suas fronteiras.
Na África do Sul, estudantes evocaram o seu nome em protestos como o movimento #FeesMustFall que exigia a descolonização da educação e a igualdade de acesso às universidades. A sua filosofia também encontrou eco em movimentos mundiais como o Black Lives Matter que denuncia o racismo estrutural nos EUA e noutros contextos.
Na diáspora africana, escritores, músicos e cineastas inspiram-se na sua vida e palavras, para desconstruir estereótipos e afirmar identidades negras para além do paradigma eurocêntrico. Steve Biko tornou-se assim um património comum da consciência africana mundial.
Conclusão
Ao fim de quase meio século, Steve Biko permanece vivo. Não apenas nas estátuas, nas canções ou nos livros de história, mas sobretudo na capacidade de continuar a inspirar gerações que acreditam na dignidade humana como fundamento da liberdade.
A sua mensagem — a de que o negro deve libertar-se da psicologia da opressão e assumir-se como protagonista da sua própria história — não perdeu força. Se o apartheid caiu, as desigualdades estruturais ainda persistem.
E é aí que Biko continua a falar. A luta por uma sociedade justa, igualitária e consciente de si mesma ainda não terminou. Ao comemorar 48 anos da sua morte, não se presta apenas homenagem a um mártir: reafirma-se a convicção de que a sua visão de uma África emancipada continua a ser necessária e urgente.
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Imagem: © Daily Dispatch