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Quinta-feira, Julho 31, 2025

SOFI 2025: Tirando África, Fome Diminui No Mundo

A fome está a recuar no mundo, mas avança sem piedade onde os conflitos armados, as alterações climáticas e a indiferença política se cruzam. África, o continente mais fértil e abundante em recursos, caminha para um panorama de catástrofe alimentar. A ONU estima que, até 2030, 60% da população mundial subalimentada viverá em solo africano.

SOFI 2025: Tirando África, Fome Diminui No Mundo


O relatório SOFI 2025 — “O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo” — revela uma realidade brutal: em 2024, mais de 735 milhões de pessoas passaram fome, a maioria delas no Sul Global, com África a emergir como o epicentro da crise alimentar mundial.

Apesar de ter havido uma ligeira melhoria a nível mundial, o flagelo da fome agravou-se em África e no Médio Oriente em 2024. Presentemente, mais de 300 milhões de africanos enfrentam hoje a fome e o pior ainda está por vir.

Nos corredores de conferências internacionais, nas cimeiras da ONU e nos salões climatizados dos organismos multilaterais, discute-se a fome como se fosse um problema abstracto. Mas no chão poeirento das aldeias africanas, nos campos estéreis de Gaza, nos bairros periféricos de Luanda e nos campos de refugiados do Sudão, a fome tem um nome, um rosto, um corpo magro a definhar.


Um Mundo Com Menos Fome


Imagem: © 2025 FAO (20250728) SOFI 2025: Tirando África, Fome Diminui No Mundo

O ano de 2024 terminou com um sinal de esperança. De acordo com o relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo” (SOFI 2025), produzido pelas cinco agências especializadas das Nações Unidas — FAO, FIDA, UNICEF, PAM e OMS — o número total de pessoas com fome diminuiu ligeiramente em comparação com os anos anteriores.

No entanto, por trás deste número escondem-se realidades opostas. África e o Médio Oriente caminham, a passos largos, para uma tragédia silenciosa. Em 2024, entre 673 e 720 milhões de pessoas enfrentaram a fome. Esta estimativa representa cerca de 8,2% da população mundial — um ligeiro decréscimo face aos 8,5% de 2023 e aos 8,7% registados em 2022.

A redução, embora modesta, é significativa e deve-se principalmente às melhorias registadas no sul da Ásia, com destaque para a Índia, bem como em algumas regiões da América Latina. Nesta última, a queda da subnutrição foi de 5,1%, significando menos 34 milhões de pessoas com fome. Mas enquanto o mundo celebra pequenos avanços, África e o Médio Oriente enfrentam uma regressão brutal.

Os dados da ONU são inequívocos: no continente africano, a fome afectou mais de 307 milhões de pessoas em 2024, o equivalente a mais de 20% da população. Uma em cada cinco pessoas em África não tem comida suficiente para viver. No Médio Oriente, cerca de 39 milhões de pessoas, ou seja, 12,7% da população, enfrentaram a mesma situação no mesmo período.

O relatório SOFI 2025, sublinha que a fome nestas regiões é agravada por múltiplas crises simultâneas: conflitos armados prolongados, instabilidade económica, alterações climáticas extremas e um sistema alimentar mundial que continua a penalizar os países com rendimentos mais baixos.

Conflitos Armados


Um dos factores mais devastadores para a segurança alimentar em África e no Médio Oriente tem sido o impacto directo dos conflitos armados.

Países como o Sudão, o Iémen, a Etiópia, a República Democrática do Congo e a Palestina vivem sob estados de emergência prolongados, em que a destruição das infra-estruturas, o bloqueio de rotas comerciais e a deslocação forçada de populações tornam impossível a produção ou distribuição de alimentos.

O caso da Faixa de Gaza é especialmente dramático. Em 2024, a totalidade da população do enclave palestiniano — mais de 1,1 milhão de pessoas — enfrentou níveis extremos de insegurança alimentar aguda. De acordo com a Classificação Integrada das Fases de Segurança Alimentar (IPC), Gaza atingiu o patamar máximo (Fase 5 – Catástrofe), registando o dobro das pessoas afectadas em relação a 2023.

Relatórios locais apontam para mais de 120 mortes por fome ou desnutrição, incluindo crianças, desde o início da ofensiva israelita em Outubro de 2023, situação que se agravou durante este ano. Na África subsaariana, os conflitos em curso no Sudão, na Nigéria e na região do Sahel agravam a escassez de alimentos, forçando milhões a fugir das suas terras e a depender da ajuda humanitária.

As organizações internacionais alertam que, nestas zonas, o colapso da produção agrícola local é praticamente irreversível sem investimentos massivos e sustentados.

Crise Climática


Outro factor determinante na escalada da fome em África é a intensificação das alterações climáticas. Secas prolongadas, cheias extremas e a degradação dos solos afectam particularmente os pequenos agricultores, responsáveis por até 70% da produção alimentar no continente.

Segundo o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), mais de 80% dos pequenos agricultores vivem abaixo do limiar da pobreza. Estes agricultores recebem menos de 1% do financiamento climático mundial, quando precisariam de cerca de 70 mil milhões de euros por ano para garantir a sobrevivência dos seus sistemas de produção.

“África importa entre 70 e 80 mil milhões de euros em alimentos todos os anos”.

“É evidente que podia ser auto-suficiente e criar milhões de empregos locais”.

Afirmou Álvaro Lario, presidente do FIDA. Esta dependência crónica de importações compromete a soberania alimentar do continente e expõe os mais pobres aos choques do mercado mundial.


Colapso Alimentar


Imagem: © 2025 FAO (20250728) SOFI 2025: Tirando África, Fome Diminui No Mundo

Enquanto a maioria dos países do Norte Global debate soluções para crises futuras — inteligência artificial, transição energética, economia verde — em várias regiões africanas o problema mais urgente continua a ser o mais primitivo: o acesso aos meios de subsistência. Em 2024, mais de 20% dos africanos passaram fome.

As previsões da ONU indicam que este número poderá ultrapassar os 512 milhões até 2030, caso nada de estrutural seja feito. Isto representa quase um em cada três africanos. A fome não é apenas uma tragédia humanitária, é também um fardo económico colossal.

As populações subnutridas apresentam menor rendimento cognitivo, menor produtividade, maior vulnerabilidade a doenças e menor expectativa de vida. Segundo a FAO (Food and Agriculture Organization), as perdas económicas causadas pela fome, má nutrição e atrasos de crescimento infantil podem ultrapassar os 11% do Produto Interno Bruto (PIB) nos países mais afectados.

Em Angola, por exemplo, mais de 38% das crianças com menos de cinco anos apresentam sinais de atraso de crescimento (stunting), uma condição irreversível associada à desnutrição crónica durante a primeira infância. As consequências são devastadoras: dificuldades de aprendizagem, maior propensão ao abandono escolar e entrada precoce no mercado informal de trabalho.

Este panorama repete-se em toda a África subsaariana. Em Moçambique, Zâmbia, Níger ou Somália, o potencial das gerações futuras está a ser erodido pela fome. E a juventude que deveria ser a principal força de desenvolvimento, está a ser empurrada para os ciclos da pobreza, da migração forçada e da radicalização violenta.

A Ajuda Internacional


Embora as agências humanitárias internacionais desempenhem um papel crucial no alívio imediato da fome, há uma crítica crescente ao modelo assistencialista ocidental que perpetua a dependência e mina a soberania alimentar africana.

O Programa Alimentar Mundial (PAM) distribuiu milhões de toneladas de alimentos em 2024. Mas em várias regiões — especialmente nos campos de deslocados no Sudão, na Somália e no Burkina Faso — os alimentos são importados, processados e embalados fora do continente.

Isto representa uma oportunidade perdida de fortalecer cadeias alimentares locais, apoiar agricultores regionais e dinamizar as economias nacionais. Além disso, a ajuda internacional está frequentemente condicionada a interesses geopolíticos. Países que não alinham com determinadas agendas externas vêem a sua ajuda cortada ou redireccionada.

O caso do Burkina Fasso, que após o golpe de Estado de 2022 perdeu parte significativa do financiamento europeu, é um exemplo flagrante de como a ajuda pode ser instrumentalizada.

Para transformar o sistema alimentar africano, é preciso mais do que doações. É necessário investimento. Infra-estruturas agrícolas, armazenamento pós-colheita, estradas rurais, mercados locais, irrigação moderna. Tudo isso sai caro, mas custa menos do que manter milhões de africanos dependentes de rações humanitárias.

Investir na Agricultura


África possui 65% das terras aráveis não cultivadas do planeta. Possui também as maiores reservas de água doce, uma população jovem crescente e uma tradição agrícola milenar. No entanto, importa até 80% dos seus alimentos e produz abaixo do seu potencial.

O relatório SOFI 2025 alerta que a insegurança alimentar continuará a aumentar caso os governos africanos não invistam massivamente na transformação rural. Em 2024, apenas 2,9% do total dos investimentos climáticos mundiais foram destinados à agricultura nos países em desenvolvimento.

Um paradoxo gritante, considerando que a agricultura é o sector mais vulnerável aos impactos climáticos e o principal sustento de mais de 60% da população africana.

“Estamos a falhar colectivamente”.

“Os pequenos agricultores africanos alimentam centenas de milhões, mas continuam excluídos do financiamento, da tecnologia e da protecção contra choques externos”.

“Investir neles é a melhor estratégia contra a fome, a pobreza e a migração descontrolada”.

Explicou o presidente do FIDA, Álvaro Lario.

Projecção Para 2030


A ONU foi clara: se o ritmo actual se mantiver, a meta da Fome Zero até 2030 — um dos principais Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) — não será atingida. Pior ainda: África será o epicentro da crise alimentar global.

O relatório estima que, até ao fim desta década, entre 509 e 513 milhões de africanos poderão viver em situação de subnutrição crónica. Este número representaria cerca de 60% de todos as pessoas subnutridas no mundo.

A degradação dos sistemas alimentares, os conflitos não resolvidos, o aumento dos preços dos fertilizantes e dos combustíveis, as mudanças climáticas descontroladas e a falta de vontade política interna e externa são apontadas como as principais causas desse colapso previsível.

Um Jogo viciado


Os especialistas alertam para o facto de o sistema alimentar mundial estar a ficar estruturalmente desequilibrado. As regras do comércio internacional, os subsídios agrícolas dos países ricos e os tratados bilaterais desfavoráveis bloqueiam o desenvolvimento de mercados alimentares justos para os países africanos.

Enquanto isso, África continua a ser tratada como um armazém de matérias-primas e um mercado de destino para excedentes alimentares do Norte. Trigo europeu, arroz asiático, frango congelado brasileiro, milho norte-americano — tudo a preços subsidiados que tornam inviável a concorrência com os produtos locais africanos.

Essa lógica colonial, enraizada nos acordos de comércio internacional e reforçada por instituições multilaterais, impede a emancipação alimentar do continente.


Uma Catástrofe Continuada


Imagem © 2024 Tsvangiary Mukwazhi (20250728) SOFI 2025 Tirando África, Fome Diminui No Mundo

Com mais de 500 milhões de africanos projectados para viverem em insegurança alimentar até 2030, o continente encontra-se num ponto de não-retorno. Mas a tragédia não é inevitável. O que falta não são soluções técnicas, mas vontade política, coragem moral e investimento estratégico. Ainda é possível evitar o colapso, desde que se mude o rumo — e rápido.

Soluções reais para um problema evitável:

1. Financiamento da agricultura familiar e regenerativa

Os pequenos agricultores produzem cerca de 80% dos alimentos consumidos em África, mas recebem menos de 10% do financiamento agrícola disponível. Dar Prioridade a linhas de crédito acessíveis, garantir assistência técnica e investir em técnicas agroecológicas pode aumentar a produtividade, restaurar solos degradados e mitigar os efeitos das alterações climáticas.

2. Infra-estruturas rurais e mercados locais

Milhões de toneladas de alimentos perdem-se todos os anos por falta de estradas, sistemas de refrigeração e armazenamento. A construção de infra-estruturas básicas nos meios rurais permitiria ligar os produtores aos mercados urbanos e regionais, reduzindo a dependência das importações.

3. Transformação de alimentos a nível local

Em vez de exportar produtos em bruto e importar bens processados a preços inflacionados, África precisa desenvolver cadeias de valor próprias. Fábricas de moagem, secagem, conservação, embalagem e distribuição a nível local e regional seriam motores de emprego e inovação.

4. Redução da dependência externa

Uma reorientação radical das políticas económicas é essencial. África deve libertar-se do modelo extractivista e dependente, combatendo os subsídios agrícolas injustos, renegociando os acordos de comércio, fortalecendo as alianças intra-africanas, como a Zona de Comércio Livre Continental Africana (AfCFTA).

5. Educação alimentar e poder comunitário

A fome não é apenas falta de comida — é também falta de poder. Investir em educação alimentar, soberania nutricional e dar poder de decisão às comunidades camponesas e indígenas é tão importante quanto distribuir sementes ou fertilizantes.

As lideranças Africanas


Embora os factores externos sejam inegáveis, os governos africanos não podem continuar a eximir-se de responsabilidade. A corrupção, a má gestão dos recursos públicos, a militarização dos orçamentos nacionais e o desvio de verbas da agricultura para sectores menos produtivos têm agravado a crise alimentar.

É inadmissível que países com vastas extensões agrícolas e potencial hídrico importem alimentos básicos. É imoral que, em alguns países africanos, os ministros viajem em jactos privados enquanto o povo cava a terra com enxadas enferrujadas.

O silêncio conivente das elites políticas africanas perante a catástrofe alimentar é tão grave quanto a negligência do Norte Global. A fome só será erradicada quando houver ruptura política e ética com o modelo vigente.

Uma Nova Narrativa Para África


Chegou o momento de África reescrever a sua própria história alimentar. Isto não significa rejeitar a cooperação internacional, mas sim moldá-la aos seus interesses estratégicos. Significa recuperar o controlo sobre os seus recursos, a sua terra, as suas sementes, o seu comércio e a sua nutrição.

Significa reconhecer que a fome é uma arma política usada para subjugar os povos, manipular os orçamentos e justificar as intervenções externas para manter a África de joelhos.

É preciso abandonar o complexo de “continente a ser salvo” e adoptar a lógica de continente que se salva a si mesmo — com justiça social, inovação endógena, sabedoria ancestral e solidariedade pan-africanista.


Conclusão


O relatório SOFI 2025 não é apenas um diagnóstico sombrio: é um alarme de urgência. Ou África muda o seu modelo de desenvolvimento alimentar, ou enfrentará a mais grave crise humanitária do século XXI. As escolhas a fazer nos próximos cinco anos determinarão o destino de centenas de milhões de vidas. O tempo das promessas já passou. Agora é o tempo da acção — radical, estrutural e inadiável.

 


O que pensas do relatório SOFI 2025? Queremos saber a tua opinião, não hesites em comentar e se gostaste do artigo partilha e dá um “like/gosto”.


 

Imagem: © 2025 FAO 
Francisco Lopes-Santos

Atleta Olímpico, tem um Doutoramento em Antropologia da Arte e dois Mestrados, um em Treino de Alto Rendimento e outro em Belas Artes, além de vários cursos de especialização em diversas áreas. Escritor prolifero, já publicou vários livros de Poesia e de Ficção, além de vários ensaios e artigos científicos.

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Francisco Lopes-Santos
Francisco Lopes-Santoshttp://xesko.webs.com
Atleta Olímpico, tem um Doutoramento em Antropologia da Arte e dois Mestrados, um em Treino de Alto Rendimento e outro em Belas Artes, além de vários cursos de especialização em diversas áreas. Escritor prolifero, já publicou vários livros de Poesia e de Ficção, além de vários ensaios e artigos científicos.
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