Índice
ToggleGuiné-Bissau: 10º Golpe De Estado. E Agora?
A Guiné-Bissau voltou a tremer no passado dia 26 de Novembro de 2025, quando os militares suspenderam as eleições e tomaram o poder, reacendendo um trauma político persistente que atravessa as últimas cinco décadas do país.
O golpe ocorreu num momento de extrema sensibilidade, com as eleições presidenciais e legislativas, realizadas a 23 de Novembro, a aguardar pela divulgação dos resultados provisórios, previstos para esta quinta-feira, dia 27 de Novembro de 2025.
Antes que o país conhecesse a decisão das urnas, o aparelho militar suspendeu todo o processo eleitoral, impôs o recolher obrigatório, fechou as fronteiras e deteve figuras centrais da disputa política. Paralelamente, todos os meios de comunicação social foram suspensos, mergulhando a população num silêncio informativo que intensificou rumores, receios e desconfiança.
Este golpe junta-se à longa lista de interrupções militares que moldaram o percurso político do país desde 1974, tornando a Guiné-Bissau um dos Estados mais instáveis da África Ocidental. E, enquanto o ex-Presidente Umaro Sissoco Embaló afirmou ter sido deposto, organizações da sociedade civil e sectores da oposição acusam-no de ter encenado um “golpe simulado” para evitar os resultados desfavoráveis.
Com o General Horta Inta-A, empossado agora como Presidente de transição, por um período de um ano e com a comunidade internacional a exigir a restauração imediata da normalidade constitucional, o país enfrenta mais um impasse decisivo, onde se cruzam interesses militares, disputas políticas e o desejo popular de estabilidade.
O Golpe

A madrugada do golpe começou com relatos de disparos esporádicos nos arredores de Bissau, seguidos por movimentações de tropas em direcção aos principais edifícios governamentais.
Horas mais tarde, a Televisão da Guiné-Bissau transmitia um anúncio do chefe do gabinete militar da presidência, Denis N’Canha que declarava a suspensão imediata dos órgãos de comunicação social, do processo eleitoral e a imposição de recolher obrigatório.
Com o golpe, Umaro Sissoco Embaló e outras figuras políticas foram presas e ficaram impossibilitadas de fazerem comunicações públicas, no entanto, fontes militares confirmaram a sua detenção em instalações do Estado-Maior, onde estão a ser “bem tratados”.
Simultaneamente, o General Horta Inta-A, comandante da guarda presidencial, foi rapidamente elevado à condição de Presidente de transição. A brevidade, sobriedade e natureza fechada da cerimónia no quartel-general reforçaram as suspeitas de que os acontecimentos haviam sido preparados com antecedência.
A composição política deste novo arranjo que incluiu detenções de outras figuras como Botché Candé e apoiantes de Fernando Dias, agravou a percepção de que a intervenção militar não visava proteger as instituições, mas sim influenciar o processo eleitoral.
A suspensão parcial do funcionamento da administração pública e o controlo das comunicações aumentaram a sensação de vazio institucional, criando um ambiente de desinformação para a população.
Expectativa das Eleições
O golpe caiu como uma bomba numa população que, nas três noites anteriores, havia permanecido diante das sedes das Comissões Regionais de Eleições em Mansoa, Bubaque, Bolama e Catió.
Esta vigilância contínua das urnas era motivada pelo receio de adulteração dos resultados, com muitos populares a dormir no chão, junto às entradas das CRE, temendo que a vontade expressa nas urnas fosse substituída por decisões de bastidores.
A tensão tornou-se particularmente visível em Bubaque e Catió, onde a polícia dispersou grupos de jovens, provocando feridos que necessitaram de assistência médica. Este gesto das autoridades aumentou a desconfiança da população, alimentada por rumores de que certos actores políticos procuravam influenciar a contagem.
A Comissão Nacional de Eleições, pelo seu lado, assegurou que todo o processo decorria com normalidade e sem irregularidades relevantes, apesar do elevado número de votos nulos e brancos registados nas legislativas, influenciados pelo apelo do PAIGC e da candidatura de Fernando Dias a expressar a rejeição do escrutínio parlamentar.
Entretanto, os observadores internacionais da CEDEAO e da ROJAE-CPLP haviam já classificado o dia da votação como pacífico, ordeiro e transparente, mas a fraca afluência matinal, contrastando com uma participação final estimada acima dos 65%, tinha deixado o país num ambiente de expectativa.
Reivindicações Opostas
O centro da crise instalou-se quando os dois principais candidatos presidenciais – Umaro Sissoco Embaló e Fernando Dias – reivindicaram posições vantajosas antes da divulgação oficial dos resultados. Fernando Dias, apoiado pelo PAIGC e pela coligação PAI–Terra Ranka, afirmou possuir dados que lhe garantiam a vitória à primeira volta.
Já Embaló, embora apelasse à prudência, insistia que não haveria segunda volta. Analistas guineenses, como Sabino Santos, asseguravam que ambas as candidaturas já conheciam a sua posição real no escrutínio. Dias mais tarde acusaria Embaló de tentar impedir a divulgação dos resultados através de uma manobra militar.
As organizações da sociedade civil, como por exemplo a coligação Frente Popular, reforçaram estas acusações, afirmando que o golpe seria uma forma de evitar o anúncio oficial marcado para o dia 27 de Novembro. Por sua vez, o ex-Presidente nunca respondeu directamente às acusações.
O golpe interrompeu abruptamente esse ciclo, bloqueando a divulgação dos resultados e adiando um desfecho democrático.
Reacção Internacional Unânime

A reacção internacional foi imediata e diversificada. A CEDEAO que tem lidado com uma onda de golpes na África Ocidental, convocou uma cimeira extraordinária para discutir a situação. O Presidente de Cabo Verde, José Maria Neves, participou na reunião, apelando ao respeito incondicional pelas regras democráticas.
A União Africana, pela voz do seu presidente em exercício, Mahmoud Ali Youssouf, exigiu a libertação imediata de Embaló e dos dirigentes detidos, lembrando a política continental de “tolerância zero” para mudanças inconstitucionais de governo. A Nigéria classificou o golpe como “insurreição militar” e alertou para o risco que representa para toda a sub-região.
A África do Sul, por seu lado, considerou o acto um “profundo desprezo pela ordem constitucional”, sublinhando o perigo de quebrar a confiança pública nos processos eleitorais. A Rússia adoptou uma posição mais moderada, pedindo contenção e diálogo dentro da legalidade institucional.
O Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Paulo Rangel, em declarações aos jornalistas, disse recusar-se a fazer “especulações” ou “interpretações” sobre o que se está a passar no país – se é um verdadeiro golpe de Estado ou uma encenação – mas apelou aos militares para que exerçam “contenção no uso da força”, tanto contra responsáveis políticos como contra a população em geral.
Estes posicionamentos revelaram a crescente preocupação internacional com a instabilidade política na Guiné-Bissau. O historial de interferência militar na vida civil torna cada nova ruptura um factor de imprevisibilidade regional, com potencial para afectar fluxos migratórios, cooperação de segurança e o combate ao tráfico de droga.
A detenção de líderes políticos, a suspensão das liberdades civis e a falta de transparência na transição colocaram pressão sobre o novo Presidente de transição para definir um calendário claro que devolvesse legitimidade ao processo institucional.
Censura Mediática

As organizações de defesa da liberdade de imprensa denunciaram a suspensão total dos meios de comunicação social, considerando-a um dos actos mais graves do golpe. Os Repórteres Sem Fronteiras afirmaram que esta decisão viola flagrantemente o direito à informação e expõe a população a rumores e desinformação num momento crítico.
A ONG lembrou que três órgãos públicos portugueses — RDP África, RTP e Agência Lusa — já estavam suspensos desde Agosto, agravando um panorama mediático fragilizado e facilmente manipulável. Ao cortar o acesso a notícias, análises e esclarecimentos, o regime militar impôs um silêncio que impede a sociedade de acompanhar a evolução da crise.
A suspensão também afectou directamente jornalistas locais, muitos deles obrigados a abandonar as redacções durante a noite do golpe, receando represálias. Reportagens independentes tornaram-se impossíveis e as comunidades rurais, já isoladas, ficaram completamente sem informação.
O bloqueio coordenado dos “media” foi interpretado como um sinal de que os militares pretendiam controlar a narrativa pública antes de qualquer explicação oficial. As organizações internacionais destacaram que este tipo de censura tende a preceder endurecimentos autoritários.
A detenção de figuras políticas como Domingos Simões Pereira, excluído da corrida presidencial, mas que apoiava Fernando Dias, alimentou suspeitas de que os militares pretendem reorganizar a arena política à sua medida.
Num país onde a alternância política depende fortemente da capacidade da mobilização popular, a ausência forçada de informação credível reforça divisões e torna o ambiente propício a manipulações. O golpe combinou, assim, interrupção institucional, controlo militar e censura informativa — um tripé que compromete, de forma séria, o retorno rápido à normalidade democrática.
Negociações e Pressões

Perante este impasse, a saída para a Guiné-Bissau dependerá da capacidade de conciliar negociações internas com pressões externas. A CEDEAO poderá desempenhar um papel crucial, como fez noutros países da região, impondo sanções ou mobilizando forças de interposição para garantir a protecção de civis e a retoma de um processo político legítimo.
A União Africana, fiel ao princípio de tolerância zero para golpes de Estado, exige que o país regresse à ordem constitucional sem demoras. A União Europeia, embora mantenha uma posição mais diplomática, sinaliza a necessidade de eleições credíveis e de respeito pelas instituições.
No entanto, a expectativa de que o general Horta Inta-A, consiga conduzir uma transição estável é vista com prudência por analistas, devido à proximidade entre sectores militares e redes de poder interno. O calendário de um ano proposto para a transição só será viável se houver vontade política, abertura à supervisão internacional e, sobretudo, confiança pública, actualmente fragilizada.
A ausência desta confiança pode conduzir a novos protestos, reacções violentas ou desobediência civil. A comunidade internacional insiste que a prioridade é garantir a segurança dos detidos, restabelecer a liberdade de imprensa e permitir que a CNE conclua a contagem que ficou interrompida.
Para os guineenses comuns, a principal preocupação é simples: que a sua vontade expressa nas urnas seja respeitada. Num país onde tantas vezes a arma se sobrepôs ao boletim de voto, a crise de 2025 pode tornar-se decisiva para definir se o futuro será de continuidade na instabilidade ou de construção de uma democracia resistente.
A Força do Povo

A Guiné-Bissau é um país com uma riqueza cultural e histórica notável que se manifesta na sua música, literatura e nas suas tradições. A compreensão das dinâmicas sociais e culturais, para além das políticas, é crucial para se ter uma visão completa dos desafios e das esperanças do país.
A complexidade da sua política, frequentemente influenciada por factores externos e internos, desafia a construção de uma democracia estável, mas a capacidade do seu povo de resistir aos problemas e o seu desejo de autodeterminação continuam a ser uma força motriz do país.
Os Golpes
A história recente da Guiné-Bissau demonstra como os golpes de Estado se tornaram quase uma constante na vida política nacional. Desde a independência, em 1974, o país assistiu a dez golpes consumados ou tentados, envolvendo desde dissensões militares internas a disputas políticas entre elites. Os acontecimentos de Novembro de 2025 encaixam nesta tradição de volatilidade institucional.
Em 1980, João Bernardo Vieira depôs Luís Cabral; em 1999, Vieira foi ele próprio derrubado por Ansumane Mané; em 2003, Veríssimo Correia Seabra afastou Kumba Ialá. Mais recentemente, em 2012 e 2023, tentativas de tomada de poder voltaram a colocar o país nas primeiras páginas das notícias internacionais.
A Instabilidade
A instabilidade tem raízes profundas: um exército politizado, rivalidades étnicas, ausência de controlo civil efectivo, influência de redes de narcotráfico e fragilidade económica. O país, com mais de duas dezenas de ilhas desabitadas no Arquipélago dos Bijagós, tornou-se um ponto estratégico para cartéis latino-americanos que utilizam a Guiné-Bissau como ponte entre a América do Sul e a Europa.
Esta infiltração criminosa distorce políticas, alimenta corrupção e cria alianças informais entre sectores do Estado e grupos armados. Em muitos casos, disputas políticas formais tornam-se apenas o reflexo visível de lutas subterrâneas por controlo de recursos e rotas ilícitas.
A proximidade geográfica com países instáveis, como a Guiné-Conacri e a dependência de apoio externo da CEDEAO e de parceiros europeus aumentam as vulnerabilidades. Neste contexto, as eleições de Novembro surgiram como uma oportunidade de renovação e clarificação do processo político.
No entanto, este golpe veio interromper essa expectativa, reacendendo debates sobre a necessidade de uma reforma profunda das Forças Armadas e sobre o papel da comunidade internacional na estabilização sustentável do país.
Conclusão
O golpe de Novembro de 2025 mergulhou a Guiné-Bissau numa encruzilhada histórica. O país enfrenta, simultaneamente, a suspensão da ordem constitucional, a censura total dos meios de comunicação social, a detenção de líderes políticos e um vazio institucional que compromete a confiança da população.
As reacções internacionais demonstram que a comunidade regional e mundial não está disposta a tolerar mais retrocessos, mas a efectividade dessas pressões dependerá da capacidade de as instituições guineenses retomarem o controlo civil do processo.
A estabilidade do país exige, acima de tudo que os resultados eleitorais sejam respeitados que as liberdades fundamentais sejam restabelecidas e que se abra um caminho político inclusivo. A Guiné-Bissau, marcada por décadas de golpes e interrupções militares, não pode continuar refém de ciclos de força.
O povo que durante dias vigiou as urnas e defendeu o valor do seu voto, espera uma resposta clara: que a democracia, tantas vezes prometida, seja finalmente cumprida.
O que pensas desta situação na Guiné-Bissau? Queremos saber a tua opinião, não hesites em comentar e se gostaste do artigo partilha e dá um “like/gosto”.
Imagem: © 2025 Patrick Meinhardt / AFP via Getty Images
