Cooperação E Potencialidades Além-Fronteiras
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Nesta décima vigésima Grande Entrevista, mergulhámos na trajetória e visão do Embaixador Gustavo Martins Nogueira, representante do Brasil na Tanzânia que partilhou a sua rica experiência pessoal, desde os corredores da diplomacia até à sua actual posição de Embaixador.
O Embaixador Gustavo Nogueira partilhou suas impressões sobre a presença brasileira na Tanzânia, destacando o seu papel como diplomata com vasta experiência, inclusive em organismos multilaterais como a AIEA. Ele enfatizou a importância da energia nuclear para o desenvolvimento pacífico do Brasil e a sua contribuição para áreas como medicina e agricultura.
Também abordou a crescente aceitação da energia nuclear como alternativa limpa diante dos desafios das mudanças climáticas e discutiu a sua trajetória diplomática diversificada, destacando experiências na Índia, na OEA e em missões de observação eleitoral, enfatizando a importância da democracia e da cooperação internacional.
Em relação à cooperação bilateral com a Tanzânia, destacou iniciativas como o programa Beyond Cotton, visando o desenvolvimento agrícola e os esforços para promover o comércio e os investimentos entre os países. Também mencionou a relevância do intercâmbio cultural e da literatura na construção de laços entre as nações.
Além disso, o Sr., Embaixador abordou questões socioeconómicas e políticas da Tanzânia, elogiando a sua estabilidade, destacando os desafios como a educação e o emprego da população jovem, apontando a importância de reduzir o desconhecimento mútuo e de intensificar os esforços de cooperação para aproveitar o potencial existente entre o Brasil e a Tanzânia.
No final da entrevista, expressou gratidão pela oportunidade de discutir as relações bilaterais e desejou sucesso à revista e aos nossos projetos futuros.
Prepare-se para uma visão peculiar de um exímio conversador, cuja cujo trabalho promove uma parceria sólida e sustentável entre a Tanzânia e o Brasil.
Junte-se a nós nesta fascinante conversa e fique a saber e a conhecer o que não está à espera…
A Entrevista
Francisco Santos (FS): Antes de mais, quero agradecer a sua disponibilidade para nos conceder esta entrevista e, para começarmos, poderia dar-se a conhecer um pouco aos nossos seguidores, dizendo quem é e falar-nos um pouco do seu percurso profissional até chegar à sua actual posição de embaixador do Brasil na Tanzânia?
Gustavo Nogueira (GN): Muito bem, muito obrigado. É um prazer participar dessa conversa com vocês e poder compartilhar algumas impressões aqui sobre a nossa presença na Tanzânia. Eu sou Gustavo Nogueira, o embaixador do Brasil aqui na Tanzânia. Sou Diplomata de carreira do Itamaraty, com quase 30 anos de carreira já. E, atualmente, servindo aqui em Dar-es-Salam, na Tanzânia.
Vanessa Africani (VA): Sr. Embaixador, eu gostaria de primeiro agradecer a sua presença. Muito obrigado pela sua participação e pelo seu tempo.
Claramente, o senhor tem uma vasta experiência como Diplomata, mas tem um cargo que o senhor ocupou que me deixou curiosa que foi a de representante alternativo do Brasil na Agência Internacional de Energia Atômica e na comissão preparatória para organização do Tratado de proibição completa de testes nucleares. O senhor pode elaborar um pouco sobre esse assunto?
(GN): Com prazer. Essa foi a minha posição mais recente antes de assumir aqui na embaixada na Tanzânia. O Brasil, enfim, tem obviamente representação não apenas bilateral, mas também em organismos multilaterais, como é o caso da AIEA e da comissão preparatória para o CTBT, lá em Viena, na Áustria, onde são sediados esses organismos.
O foco do trabalho na AIEA é justamente a energia nuclear, mas é o emprego da energia nuclear para fins pacíficos e, esse, é um campo vastíssimo de muito interesse, de muita importância para o Brasil e para contribuir para o desenvolvimento do país, não apenas na geração de energia.
Como sabemos, o Brasil já conta com energia nuclear em Angra 1 e 2 e está no processo de construir a terceira Usina, Angra 3, mas também o emprego de tecnologias nucleares para uma gama muito grande de usos.
Tanto na agricultura, na medicina e em diferentes áreas. Na área da Medicina, por exemplo, é possível mencionar a importância cada vez maior da Medicina Nuclear, do emprego de radionuclídeos para tratamento de doenças crônicas, por exemplo, na área de Oncologia. Então, todas essas questões são muito importantes para o desenvolvimento do país, não apenas na geração de energia, mas para o emprego de outras tecnologias.
Entretanto, como se trata de uma tecnologia muito sensível, que é a do Urânio, é preciso ter um sistema muito específico para controle dos estoques desse material, e aí, enfim, é aí que entra a Agência Internacional de Energia Atômica, e, portanto, lá temos esse papel.
O Brasil é um dos poucos países do mundo que domina todo o ciclo do combustível nuclear, o Brasil tem minério de urânio e consegue processar todo o minério de urânio até virar combustível para as nossas usinas. Enfim, é um tema muito vasto, distinto do que estou fazendo hoje, mas faz parte da experiência diplomática essa mudança de portfólio a depender do lugar onde você está servindo.
(FS): É uma mudança de portfólio interessante, eu, quando pronto terminei o Liceu e quis seguir para a Universidade, o que eu queria seguir era exatamente energia nuclear.
Infelizmente em Angola, nesse tempo estávamos dependentes do estado, porque na altura não havia universidades, mandavam-nos para o estrangeiro completar os cursos e eles precisavam era de Engenheiros químicos, então a minha energia nuclear virou Engenharia Química.
Mas é uma coisa que eu sempre adorei e sigo e estou a par e sou daqueles que acha que é uma possibilidade de energia Verde, infelizmente muita gente continua a achar que é perigosa que é isto que é aquilo, enfim, já se evoluiu muito, mas os mitos continuam.
(GN): É importante ter mencionado esse aspecto. Porque de fato a energia nuclear tem despontado cada vez mais como uma alternativa de energia limpa, ela não é renovável, mas é limpa, é uma energia de Baixo Carbono, que enfim, como todos sabemos, o mundo está enfrentando.
O Grande Desafio das mudanças climáticas e da necessidade de realinhamento das fontes de energia para fontes que sejam mais limpas, para enfim conter o avanço das mudanças climáticas. E cada vez mais há um reconhecimento do papel que a energia nuclear pode desempenhar nesse Panorama de alteração do perfil da matriz energética dos países.
A Agência Internacional de Energia Atômica inclusive vem participando já há três ou 4 anos das reuniões anuais da COP que discutem o tema da transição energética. Ou seja, antes havia de fato, como mencionou, uma rejeição e uma resistência muito grande à energia nuclear como parte da solução.
Hoje há um entendimento mais sofisticado de que é preciso considerar sim um pacote de transição energética que inclua maior geração nuclear.
Basta ver o que está sendo feito por países que apostaram nisso, quer dizer, a China vem crescendo muito e reconheceu rapidamente o desafio associado ao volume de emissões por causa do crescimento econômico baseado no carvão, que passou a dedicar um investimento cada vez mais pesado na energia nuclear e hoje é um dos países com o maior número de usinas em operação ou em construção.
Outros países europeus também têm tomado a decisão, a França por exemplo, acho que 80% da energia gerada na França vem da energia nuclear e há em vários países essa percepção de que para assegurar que serão atingidas as metas de redução de missões e de transição para Fontes mais limpas de energia você não pode abrir mão da energia nuclear como parte do Mix.
(FS): Eu estive a ler a sua biografia para fazer estas perguntas, estive a ler todo o seu percurso, passou pelos Estados Unidos da América, Áustria, Índia, Zimbabwe, Malawi, Moçambique, estudou na universidade de Georgetown, fez um mestrado na universidade de Tokai no Japão.
Enfim, passou por meio mundo e a minha pergunta é muito simples: em que parte é que estas viagens e estes contactos o ajudam no seu cargo actual como embaixador do Brasil na Tanzânia?
(GN): Obrigado pela pergunta. De fato é uma trajetória variada com, enfim, atribuições muito distintas a depender do país em que servia a cada momento.
No que diz respeito às minhas atribuições atuais como representante do Brasil junto ao governo da Tanzânia, eu diria que o aspecto mais relevante é a experiência acumulada a respeito das Ferramentas que estão disponíveis para o aprofundamento das relações bilaterais entre o Brasil e a Tanzânia.
Quer dizer, ao longo dessa carreira, eu pude atuar em diferentes posições e perceber a Ampla Gama de possibilidades de aproximação, tanto no que diz respeito ao comércio, a investimentos, a aproximação humana cultural, de enfim, reduzir o desconhecimento que há entre o Brasil e a Tanzânia.
E, portanto, eu diria que um aspecto central que essa experiência profissional me traz é justamente o conhecimento das ferramentas que estão disponíveis para isso.
(VA): Sr. Embaixador, a sua trajetória profissional começou no ministério das relações exteriores do Brasil em 1997 e nesse momento o senhor é embaixador do Brasil na Tanzânia. Ao longo desse seu percurso, qual o senhor considera que foi o momento mais marcante ou desafiador da sua carreira diplomática?
(GN): Bom, essa uma pergunta muito ampla, sempre houve vários momentos, cada país e cada experiência teve as suas peculiaridades.
A Índia, por exemplo, é um país fascinante, mas igualmente muito desafiador pela distância cultural que tem do Brasil e também pela dimensão própria do país, um país com 1 bilhão 400 milhões de pessoas e uma história milenar. Então foi muito desafiador e muito marcante estar exposto a uma cultura tão distinta da nossa.
Mas também há outros momentos assim. Ainda no começo da minha carreira trabalhando na delegação do Brasil junto à OEA, a Organização dos Estados Americanos, eu pude, por exemplo, participar de missões de observação eleitoral na nossa região.
Foram experiências muito interessantes para perceber a importância justamente atribuída à legitimidade dos processos democráticos na nossa região e o quanto os partidos e as forças políticas envolvidas nesses projetos em cada um dos países apreciam o apoio da Comunidade Internacional para observar e enfim chancelar a legitimidade e a lisura do processo.
Então esse foi também um outro aspecto muito interessante. Afinal, eleições são uma circunstância comum a todos os países Democráticos e os questionamentos a respeito da lisura do processo eleitoral sempre ocorrem.
Então toda toda ferramenta que permita contribuir para o fortalecimento dessa percepção de que o processo democrático tem sido bem conduzido sempre é positivo. E também tive tantas experiências anteriores aqui na África, sempre muito marcantes, então há uma ampla gama.
(FS): Sr. Embaixador, já que falou em África, vamos falar um pouco exatamente do que nos traz de certa maneira aqui. Agora que já o ficamos a conhecer um bocado melhor, vamos falar concretamente da sua posição de Embaixador na Tanzânia.
Sou sincero. Não sei muito do que é que se tem feito aí pela Tanzânia, por exemplo, estive a ler aqui há tempos sobre o programa Beyond Cotton, em que o Brasil é um dos parceiros, mas pouco mais encontrei. A pergunta que eu faço é simplesmente esta: que planos e que objetivos é que estabeleceu para fortalecer as relações entre o Brasil e a Tanzânia durante este período em que vai ser aí Embaixador.
(GN): Bem, obrigado pela pergunta e obrigado pela menção ao programa Beyond Cotton, de fato é um projeto do qual nos orgulhamos. O Brasil conta com essa ferramenta muito importante que é a Agência Brasileira de Cooperação, que é ligada ao Ministério das Relações Exteriores e é responsável pela implementação de projetos de cooperação para o desenvolvimento na vertente sul-sul com o perfil e características que o Brasil atribui.
Em países como a Tanzânia, o que se percebe, por exemplo, é uma importância muito grande do setor agrícola. O setor agrícola aqui é responsável por 25 do PIB do país e emprega cerca de 80% da população, então o desenvolvimento as melhorias do setor agrícola é um aspecto relevante para o desenvolvimento econômico e a melhoria do bem-estar social do povo tanzaniano.
Então uma prioridade estabelecida para a embaixada do Brasil na Tanzânia e que eu procuro estimular e alavancar e faz parte dos objetivos da minha gestão é justamente seguir contribuindo para o compartilhamento pelo Brasil de técnicas agrícolas que permitam a melhoria da produtividade do setor agrícola tanzaniano.
Isso com base nos desenvolvimentos que o Brasil alcançou ao longo das últimas décadas com todos os esforços em matéria de pesquisa e desenvolvimento realizados pela Embrapa.
A Tanzânia tem o seu próprio Instituto de Pesquisa agrícola, o TARI (“Tanzania Agriculture Research Institute”), que é uma instituição bastante consolidada com presença em todo o território tanzaniano e é um parceiro muito bem receptivo das iniciativas que o Brasil tem apresentado, entre elas o Beyond Cotton.
Também há o Cotton Victória e outras iniciativas em matéria de cooperação agrícola, então a cooperação na área da agricultura é um aspecto relevante da atuação da embaixada.
Mas naturalmente há outras vertentes igualmente importantes que temos procurado destacar e avançar em matéria de comércio e investimentos. Por exemplo: há hoje na Tanzânia algumas empresas brasileiras em atuação e a Embaixada tem procurado contribuir para facilitar o diálogo entre essas empresas e os parceiros tanzanianos naquilo que nos couber e também temos procurado estimular a aproximação comercial.
No ano passado, por exemplo, as trocas comerciais entre o Brasil e a Tanzânia mais do que duplicaram, chegaram a cerca de 80 milhões de dólares, sobretudo em função de uma escassez de açúcar aqui na região que tem estimulado um aumento das importações do açúcar brasileiro para a Tanzânia. Enfim, cooperação para o desenvolvimento é uma vertente, comércio e investimentos é outra vertente.
E também temos, naturalmente, uma vertente de coordenação política, de aproximação entre as lideranças dos países e diálogo entre diferentes esferas de governo. Aliás, muito me alegra saber do papel atuante do embaixador Adelardus Kilangi, que é o embaixador da Tanzânia em Brasília, com o qual também temos tido muito contato justamente nesse esforço conjunto de aprofundar os contatos bilaterais em todas as vertentes possíveis.
(VA): Sr. Embaixador, considerando a importância crescente da África no panorama internacional, como o senhor vê o potencial de crescimento do comércio e investimentos entre o Brasil e os países africanos, em particular com a Tanzânia?
(GN): Bom, há muito potencial. A Tanzânia vem crescendo muito e apresentando números econômicos cada vez mais positivos e estimulantes. Justamente na última sexta-feira, a Moody’s, uma das agências internacionais de rating, elevou o rating da Tanzânia para B1.
Isso significa que o país está se aproximando cada vez mais de um grau de investimento, o que naturalmente facilita o acesso a crédito internacional mais barato e estimula investidores estrangeiros a considerarem a Tanzânia como um destino potencial de investimentos.
Além disso, a própria natureza do trabalho que vem sendo desempenhado pela presidente Samia Suluhu Hassan é fundamental. No momento, ela é a única presidente mulher em todo o continente africano.
Ela tem feito um trabalho muito importante de abertura econômica do país, assumindo a responsabilidade de apresentar a Tanzânia ao mundo. Isso é uma coisa muito importante. Ela tem feito muito uso da diplomacia presidencial, recebendo líderes estrangeiros e viajando ela própria para diferentes partes do mundo para estimular um maior conhecimento a respeito das potencialidades disponíveis aqui.
Naturalmente, o que é preciso ainda fazer é explorar esse potencial, identificar os interesses específicos que possam vir a ser atendidos pelas oportunidades que existem. A presidente Samia Hassan também tem feito um trabalho muito importante, mais difícil, mais delicado e mais gradual de reajuste das expectativas culturais do país.
Claro, estamos falando de uma região e de um país com crenças atávicas, com atitudes com relação às mulheres, com atitudes com relação a minorias, que são ainda muito difíceis de ultrapassar. A Tanzânia, por exemplo, tem um grave desafio com o casamento infantil. As meninas aqui são forçadas a se casar muito cedo por uma questão cultural antiga.
A presidente Samia é uma grande defensora de manter as crianças na escola, manter a menina na escola, e assegurar educação e oportunidades de emprego para as mulheres também. Ou seja, há todo um trabalho em questões de gênero que vem sendo capitaneado pela própria presidente.
E, claro, na condição de presidente da República, procurando justamente demonstrar e inspirar as meninas tanzanianas a almejarem um futuro de maior autonomia e independência.
(FS): Ainda bem que falou no aspeto cultural. Ainda bem que há uma presidente mulher que se preocupa com as outras mulheres em África. Infelizmente, é um flagelo. Mas África também tem uma cultura muito rica e vasta, especialmente na Tanzânia. A Tanzânia é conhecida internacionalmente, muito também por causa dos Massai, porque os Massai são conhecidos no mundo inteiro.
E depois, ironicamente, temos o problema do suaíli, que as pessoas fora da África acham que em toda a África se fala suaíli, porque nos filmes só se fala suaíli. Portanto, há uma rica cultura na Tanzânia até na gastronomia.
Eu adoro gastronomia e já andei a pesquisar os pratos e são pratos interessantíssimos. Mas a pergunta que eu vou fazer não vem pela parte do facilitismo do, se já provou pratos, se aprendeu a falar suaíli e coisas habituais, não.
Eu quero de facto saber concretamente, porque eu sou muito ligado à cultura e por isso é um tema muito importante para mim que estratégias pretende implementar aí, obviamente através da embaixada na Tanzânia, para fomentar o intercâmbio cultural?
Porque o Brasil também é um país muito rico culturalmente, por isso, o que é que tem planeado ou que planos é que tem para incentivar este intercâmbio cultural entre estes dois países, ricos culturalmente?
(GN): Bem, obrigado pela pergunta. O intercâmbio cultural é um aspecto de fato muito rico e fascinante do diálogo entre nações, porque justamente é aí que percebemos e encontramos as especificidades de cada cultura, mas também a universalidade, aquilo que temos em comum.
No caso da Tanzânia, em particular, eu começaria dizendo que os contatos dessa região aqui da Tanzânia com a cultura luso-brasileira são anteriores à descoberta do Brasil propriamente dita.
Isso porque já nos Lusíadas, de Camões, registra-se ao descrever o trajeto de Vasco da Gama pela costa africana, os primeiros contatos portugueses com as populações muçulmanas que viviam nas ilhas da costa da Tanzânia, como a ilha de Pemba e a ilha de Zanzibar. Então, os contatos culturais entre a Tanzânia e a cultura luso-brasileira já vêm daí.
Inclusive, quando falou do suaíli, de fato, há essa visão da importância do suaíli na região, porque o suaíli não é falado apenas na Tanzânia. O suaíli é uma língua que funde vários elementos do árabe com elementos tradicionais africanos bantu, mas inclusive elementos portugueses desse momento inicial de contato.
Em suaíli, a palavra para sapato é “sapato”, em suaíli, a palavra para designar uma mesa é “mesa”, e as pessoas que tem no seu entorno, na sua família, em suaíli, é uma família.
Então, é uma língua com muita proximidade com o português nesses aspectos. Uma outra anedota inclusive muito interessante é que hoje quando se fala em suaíli, dos nomes dos países, normalmente os nomes dos países em suaíli são facilmente identificáveis. Você não precisa falar suaíli para entender de que país estamos falando.
Em suaíli, por exemplo, existe o país chamado “Marekani”, como eles chamam os americanos. Então, são os Estados Unidos, ou então “Uingereza” são os ingleses. O país “Uingereza” é o Reino Unido, o país “Ujerumani” é a Alemanha.
Entretanto, nesse painel todo existe um país que é Portugal, que tem um nome que é difícil de associar, porque o nome para Portugal em suaíli é “Ureno”. Quando eu inicialmente fui informado disso, eu me perguntei: mas de onde terá partido essa designação? “Ureno”, quando todos os nomes de países são tão mais próximos.
E eu fui estudar melhor isso e descobri que é porque Portugal começou a ter contato com a região ainda no momento das grandes navegações, e quando os portugueses cá se apresentaram, eles se apresentaram como cidadãos do país do Reino de Portugal, o Reino – “Ureno”.
Então, para o ouvido suaíli, ficou: eles são membros do Reino “Ureno”, o Reino de Portugal. Ou seja, a conexão cultural é sabidamente centenária, tem vários séculos de trocas de contatos entre os países aqui.
Na embaixada, o que temos procurado fazer para estimular um aprofundamento desse conhecimento mútuo, enfim, tem várias vertentes. Tem a vertente, por exemplo, do cinema brasileiro.
Nós procuramos aqui divulgar, até por entender que o cinema é uma forma de transmissão muito imediata da realidade do país e de melhoria do diálogo bilateral, e a embaixada promove anualmente um festival de cinema brasileiro aqui em Dar-es-Salam. No ano passado, ele ocorreu em novembro.
Trouxemos vários filmes brasileiros recentes e houve uma grande procura, sala sempre cheia. E eu participei dessas sessões, inclusive, com perguntas e respostas.
Então, assim, no contexto da apresentação do filme, você pode dialogar um pouco a respeito do que o filme vai apresentar. Por exemplo, um dos filmes que foi apresentado no festival de cinema brasileiro aqui no ano passado foi o “Marighella” e o momento histórico do Brasil passando por uma ditadura militar.
É uma época traumática na história do país, que encontra ecos aqui. Ou seja, o cinema é uma possibilidade.
A culinária é outra possibilidade. Aqui, a gente recebeu já a visita de chefs brasileiros para workshops de culinária brasileira. E também tenho planos de estimular a um maior conhecimento e familiaridade com a língua portuguesa. O Brasil não é o único país lusófono aqui representado. Nós também temos uma embaixada de Angola e uma embaixada de Moçambique.
E tenho mantido bom contato com os colegas, os embaixadores de Angola e de Moçambique, para justamente construirmos juntos uma agenda de diálogo em torno da CPLP, da comunidade de Países de Língua Portuguesa, e do estímulo ao maior conhecimento da língua portuguesa.
O português é uma das línguas estudadas na Academia Diplomática Tanzaniana, entre outras razões por que eles têm um vizinho que fala português. A fronteira sul da Tanzânia é Moçambique. Então, há um interesse acadêmico importante na língua portuguesa e no diálogo com o mundo lusófono. E a gente procura estimular isso aqui na embaixada.
(FS): Só uma pergunta extra e em relação à literatura? Eu conheço muito mal a literatura da Tanzânia, conheço escritores de outros países africanos, mas sou franco, em relação à Tanzânia, conheço pouco. Há algum grande movimento literário com que se possa também fazer um intercâmbio cultural?
(GN): A Tanzânia tem um Nobel da Literatura, Abdulrazak Gurnah. Ele recebeu o Nobel há 3 anos atrás e é uma grande figura do mundo literário tanzaniano, um grande testemunho da história recente do país. Ele é de Zanzibar, muçulmano. A Tanzânia é um país que tem uma presença muito importante cristã, mas também uma outra parte muçulmana, sobretudo no litoral.
Então é um conjunto cultural importante aqui. E Abdulrazak Gurnah é uma grande referência da literatura do país, com um estilo muito envolvente e interessante. É uma grande janela para o mundo suaíli, sobretudo da cultura da costa do país. Mas, quer dizer, há outros, há um movimento literário. Percorrem personagens, assim como também em outros países africanos.
Desde Chinua Achebe lá na Nigéria, mesmo escrevendo fora do país, fora do continente, mas são vozes cada vez mais importantes na literatura do continente africano, e algumas delas são aqui da Tanzânia, inclusive com Prêmio Nobel de Literatura. Então, há um potencial importante nessa seara também, inclusive, eles se esforçam muito para tentar ter maior amplitude de leitura e de tradução.
Então, um esforço que se faz é de buscar traduzir a literatura brasileira para cá, mas também buscar ampliar o conhecimento da literatura deles no nosso país, porque a literatura é uma grande janela para um conhecimento mais aprofundado da cultura do outro.
Quando você percebe o entorno imediato e o processo histórico pós-independência dos países dessa região, é preciso destacar a trajetória muito positiva que a Tanzânia teve, e a importância de uma liderança firme. Julius Nyerere, o primeiro presidente, conduziu os destinos do país depois que os britânicos deixaram a Tanzânia.
Ele tinha uma visão muito clara da nação que queria construir e consolidar, e ele conseguiu. E fazer na Tanzânia o que países aqui do entorno não conseguiram, por exemplo, a Tanzânia tem mais de 160 tribos diferentes e isso é muito comum aqui nos países da região, serem caracterizados por diferenças tribais dentro dos seus territórios.
Entretanto, nos outros países, como por exemplo, no Malawi, onde eu também servi como Embaixador, essas diferenças tribais são marcantes até hoje e há certo embate político pela liderança do país entre tribos distintas.
Aqui na Tanzânia, justamente pelo estímulo ao suaíli como sendo a língua nacional, houve um esforço muito grande por parte do Julius Nyerere, o primeiro presidente, no sentido de minimizar a importância tribal de pertencimento a um determinado grupo tribal e destacar a nacionalidade, destacar a sensação de pertencimento à nação tanzaniana.
E isso contribuiu tremendamente para uma coesão do país. Você visita hoje qualquer parte do país e todos falam suaíli e todos se sentem igualmente tanzanianos. É um país que também, em função disso, se caracteriza por um regime de paz e tranquilidade, um país que não tem conflitos étnicos, que não tem guerra interna, guerras tribais.
Quer dizer, quando você considera o entorno imediato, quer dizer, do outro lado do Lago Tanganica, na fronteira oeste da Tanzânia, você tem a República Democrática do Congo que está envolvida em um conflito há décadas, é um conflito entre diferentes etnias que vai ganhando cada vez mais um caráter regional. É um foco de instabilidade muito grande.
Ao sul da Tanzânia, no norte de Moçambique, infelizmente, nos últimos anos, a província de Cabo Delgado também está conflagrada com um conflito envolvendo terroristas islâmicos e uma instabilidade e deslocamentos internos e uma crise muito grande nesse entorno todo.
A Tanzânia segue pacífica e isso é um grande ativo do país para assegurar o desenvolvimento econômico e atração de maior investimento e comércio pois, naturalmente, em uma situação de país conflagrado, não haveria interesse do investidor estrangeiro. Quer dizer, a estabilidade econômica, a estabilidade social é um dos grandes ativos da Tanzânia hoje para atrair mais investimento.
(VA): Sr. Embaixador. Então, para terminar a nossa entrevista, eu gostaria de fazer uma pergunta que a gente faz para todos os brasileiros entrevistados para a nossa revista. Com base na sua experiência, o que o senhor acha que ainda não foi feito, mas que poderia ser feito, de uma forma geral, para aumentar o comércio bilateral entre o Brasil e a África?
(GN): Bom, as ferramentas estão dadas, a gente precisa só de continuar a trabalhar. O que precisa ser feito? Reduzir o desconhecimento mútuo.
Ainda há muito desconhecimento a respeito das potencialidades, porque os potenciais estão aí, mas ele não é reconhecido por muitos dos atores. No caso da Tanzânia, em particular, por exemplo, até pelo próprio processo histórico do país, eles são naturalmente muito mais voltados para o comércio com o Oriente Médio, com a Índia, com a China.
Ou seja, eles estão de frente para o Oceano Índico. Então, a resposta natural deles, quando se fala em um engajamento mais aprofundado com outros países, a resposta natural da Tanzânia é aprofundar o engajamento com os países que eles veem diante de si, são os países que eles alcançam através das grandes rotas comerciais do Oceano Índico. Mas naturalmente isso não deve se dar em prejuízo de um maior engajamento com o Brasil.
E a gente pode perceber isso claramente, só nessas recentes tendências do comércio bilateral. Quando uma escassez de açúcar foi observada aqui no país em função específica do desempenho da safra nacional, a Tanzânia então abriu-se ao mercado exterior para buscar o açúcar e passou a comprar, de onde mais? Do Brasil.
O potencial está aí, a gente precisa só reduzir o desconhecimento, aproximar as pessoas de parte a parte e as ferramentas para isso existem aqui na Embaixada.
Uma das coisas que conseguimos lograr aqui na Embaixada recentemente foi a abertura do setor de promoção comercial, com a contratação de uma funcionária tanzaniana especificamente dedicada a estimular esse contato entre potenciais importadores, exportadores tanzanianos com suas contrapartes no Brasil.
E é uma pessoa muito bem qualificada, uma senhora tanzaniana que viveu no Brasil alguns anos e que vai nos ajudar nesse diálogo e facilitar a preparação de relatórios e indicar, enfim, direcionar as solicitações específicas nos diferentes segmentos.
Ou seja, o que é preciso fazer? O que é que não está sendo feito ainda? Precisamos fazer mais do mesmo, aquilo que já vem sendo feito, mas precisa ser intensificado. Precisa ser intensificado porque as oportunidades estão aí.
(FS): É esse o nosso objetivo: dar a conhecer África ao mundo e, de certa maneira, o potencial de África. Eu acredito piamente que África vai ser a próxima grande potência e está bem posicionada, tanto a nível da questão climática, como a nível da questão energética, como a todos os níveis.
Portanto, só temos que tirar rendimento deste magnífico continente que é o continente africano e seremos o número um nos próximos anos.
(GN): Com certeza, aqui há potencial em todas as áreas, o continente tem um dividendo demográfico incrível, uma população jovem. Naturalmente, eles têm aqui o desafio de dar a educação adequada a essa população e oferecer emprego. Então eu diria que hoje um dos grandes desafios africanos é o desenvolvimento do seu capital humano.
Inclusive claro, naturalmente aqui na Tanzânia também, que é um país com uma população muito jovem, que já hoje supera os 61, 62 milhões de pessoas, ou seja, uma população superior à da África do Sul.
Entretanto com o PIB que é 1 quinto do PIB da África do Sul e com uma taxa de fertilidade tão grande, a Tanzânia tem uma taxa fertilidade de 3%, que projetando-se, dá a entender que a população da Tanzânia vai dobrar nos próximos 23, 25 anos para cerca de 120 milhões de pessoas.
Ou seja, eles têm um grande desafio de dar educação e emprego a essa população, mas também é um grande trunfo demográfico, eles têm a chance de alcançar um novo patamar de desenvolvimento a partir dos elementos econômicos que estão hoje disponíveis e o Brasil, naturalmente, está aqui para tentar contribuir para esse processo de desenvolvimento e participar dessa história.
(VA): Sr. Embaixador, gostaria mais uma vez de agradecer sua presença.
(FS): Sr. Embaixador, foi um prazer. Espero que possamos mais tarde voltar a conversar novamente quando houver assim algum projeto interessante do qual se possa falar. Nós ficamos abertos a novas possibilidades. Para já, agradeço imenso o tempo que nos dispensou e muito obrigado pela entrevista.
(GN): Muito obrigado, Francisco. Muito obrigado, Vanessa, pela oportunidade, para mim foi um grande prazer participar e trocar impressões com vocês sobre essa grande potencialidade do relacionamento bilateral entre o Brasil e a Tanzânia, e claro do continente africano como um todo, e um sucesso para a revista e para os projetos em que vocês estão aí envolvidos, votos de muito sucesso.
Imagem: © 2024 Francisco Lopes-Santos