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ToggleAngola: Quem Está No Poder Conta A História
Angola prepara-se para assinalar, a 11 de Novembro de 2025, meio século de independência e soberania. A data é simbólica e convida à celebração de conquistas, mas também à reflexão sobre as feridas ainda abertas de uma guerra civil que se prolongou por quase três décadas, significando maturidade política, reconciliação plena e memória partilhada.
No entanto, o testemunho de antigos combatentes e dirigentes da oposição tem vindo a lançar um olhar crítico sobre a forma como o país construiu e registou a sua memória colectiva. Entre essas vozes destaca-se a de Bastos Ngangwe, actual secretário provincial da UNITA em Mavinga e antigo comissário político no seio das Forças Armadas de Libertação de Angola (FALA).
Segundo Ngangwe — “Aquele que está no poder é o único que está a contar a história”. Esta frase, não é um simples desabafo, é apenas um desabafo. É uma adaptação à realidade angolana da célebre frase de George Orwell: “a história é escrita pelos vencedores” e lembra que a independência trouxe liberdade política formal, mas que a reconciliação de memórias ainda está por concretizar.
Ngangwe tenta assim mostrar que a história oficial tem sido apresentada de forma unilateral, ditada exclusivamente pelo MPLA, o partido no poder, desde a guerra civil que se seguiu ao 11 de Novembro de 1975, moldando não apenas o destino político do país, mas também a narrativa oficial que hoje domina os livros escolares, os memoriais e os discursos de Estado.
A partir do seu testemunho, mas também à luz dos debates mais amplos sobre reconciliação nacional e justiça histórica, torna-se possível compreender o peso das memórias silenciadas, os desafios de um país ainda marcado por divisões e a urgência de reconhecer todas as vozes que participaram no processo de libertação.
Memórias da Guerra

Natural do Bié, Bastos Ngangwe cresceu em uma Angola mergulhada em conflito. A guerra civil que eclodiu logo após a independência obrigou-o a abandonar a sua terra natal e seguir o pai, comandante e militante da UNITA desde os primórdios. O destino foi a Jamba, no Cuando Cubango, local que se tornaria o quartel-general da UNITA e símbolo maior da luta de Jonas Savimbi.
Ngangwe iniciou a formação académica nas chamadas “Terras Livres de Angola”, zonas sob controlo da UNITA durante o conflito. Foi nas matas do sudeste angolano que aprendeu as primeiras letras, antes de ingressar no Instituto Polivalente Loth Malheiro Savimbi, a maior escola do movimento.
Mais tarde seguiu a formação militar, especializando-se como comissário político, figura encarregue de motivar as tropas e assegurar o moral em combates intensos contra as forças governamentais do MPLA, apoiadas por Cuba.
Segundo recorda, a Jamba não foi apenas um acampamento militar. Durante anos, transformou-se num centro administrativo e político da UNITA, com escolas, actividades culturais, hospitais improvisados e estruturas de governação paralela.
Ngangwe, rejeita, por isso, a narrativa, tão frequentemente apontada ao movimento de Jonas Savimbi, de que o espaço fosse marcado pela repressão. Para si, a ideia de prisões arbitrárias e abusos sistemáticos, não corresponde à realidade que viveu, segundo ele, o que existia era uma disciplina militar comparável à autoridade de um pai sobre um filho.
A Jamba

Localizada no coração do Cuando Cubango, a Jamba tornou-se mais do que um quartel: funcionou como uma verdadeira capital paralela da UNITA. Era ali que Jonas Savimbi encabeçava as operações militares, organizava estruturas de governação e transmitia orientações políticas.
Savimbi, descrito por Ngangwe como um “homem aberto que lidava com todas as camadas sociais”, valorizava de forma particular a educação. Gostava de visitar as escolas e encorajar os estudantes, transmitindo a ideia de que a formação integral do homem era a base de uma sociedade livre.
Apesar das denúncias de violações de direitos humanos associadas à Jamba, Ngangwe insiste que os casos existentes se resumiam a repreensões pontuais. Crimes no “verdadeiro sentido da palavra”, diz, não teriam existido. Reconhece, todavia, que a guerra fez vítimas, mas defende a integridade de Savimbi, a quem atribui respeito pela vida humana, incluindo a de militares adversários.
Durante quase três décadas de guerra, o Cuando Cubango foi palco de violentos confrontos entre a UNITA e as FAPLA, apoiadas pelas tropas cubanas. A Jamba, contudo, permaneceu intocada, símbolo da capacidade de resistência do movimento.
Segundo Ngangwe, a estratégia da UNITA baseava-se em desgastar o inimigo, promovendo ataques à retaguarda e obrigando-o a recuar. Um exemplo é a chamada operação “Último Assalto”, ofensiva das forças governamentais contra a Jamba que acabou por fracassar.
As FAPLA foram perseguidas até ao Cuito Cuanavale e só conseguiram regressar porque as FALA abriram um corredor para evitar o seu aniquilamento. Este gesto, argumenta Ngangwe, reflecte a valorização da vida humana por parte de Savimbi, mesmo em contexto de guerra.
A Memória do Cuito Cuanavale

A Batalha do Cuito Cuanavale (1987-1988) permanece como um dos episódios mais debatidos da história militar angolana. Para o Governo, simboliza não apenas a resistência das forças aliadas ao MPLA, mas também um marco da libertação da África Austral, tendo influenciado o fim do apartheid.
Contudo, Ngangwe critica esta versão, considerando-a uma leitura distorcida. Na sua visão, a luta dos povos da região pela independência não dependia do que ocorreu no Cuito Cuanavale. Além disso, lamenta a escassa referência à UNITA nos memoriais oficiais, defendendo que uma abordagem justa deveria incluir igualmente os generais do movimento.
O contraste entre a memória oficial e a memória dos antigos combatentes da UNITA ilustra a dificuldade de Angola em construir uma narrativa nacional inclusiva. À medida que Angola se aproxima dos 50 anos da independência, permanece a crítica de que figuras como Jonas Savimbi ou Holden Roberto são sistematicamente apagadas das cerimónias e dos actos de condecoração.
Para Ngangwe, esta omissão é um sinal da ausência de verdadeira reconciliação. Independentemente das diferenças políticas e dos conflitos armados, tanto Savimbi como Holden Roberto tiveram um papel decisivo no processo de libertação. Ignorar o seu contributo é, para ele, negar uma parte essencial da história do país.
A reconciliação, sustenta, continua por cumprir, só será plena quando se reconhecer o outro, aceitando que a independência foi uma conquista colectiva, com esforços e sacrifícios vindos de várias frentes, dando assim voz a todos os intervenientes do processo histórico.
Enquanto as narrativas oficiais privilegiarem apenas uma versão, as feridas da guerra permanecerão abertas. A história do país, acredita, será um dia contada pelos historiadores e, sobretudo, por aqueles que viveram e participaram nos acontecimentos.
A Nova Província do Cuando
Actualmente residente em Mavinga, Ngangwe assiste às transformações administrativas recentes. A criação da nova província do Cuando, desmembrada do Cuando Cubango, trouxe expectativas, mas também críticas.
A UNITA não subscreveu a medida, alegando que antes deveriam ter sido criadas condições mínimas, como estradas e infra-estruturas básicas. Para Ngangwe, a construção da nova capital provincial não passa ainda de uma ideia, quando a população continua a enfrentar carências profundas em saúde, educação e transporte.
A dificuldade em ligar Menongue a Mavinga é apontada como exemplo das barreiras que persistem no território.
Conclusão
O testemunho de Bastos Ngangwe reflecte um sentimento partilhado por muitos antigos combatentes e cidadãos que viveram a guerra: a história de Angola não pode ser contada apenas por quem venceu politicamente.
Meio século depois da independência, o país enfrenta o desafio de construir uma memória inclusiva, capaz de integrar vozes divergentes e reconhecer todos os que contribuíram para a libertação.
A frase de Ngangwe — “aquele que está no poder é o único que está a contar a história” — serve para lembrar que Angola não tem uma narrativa única, tem várias narrativas, por isso é preciso criar-se uma memória plural, capaz de consolidar a reconciliação nacional e projectar um futuro comum.
Se o século XX foi marcado pela luta armada e pela conquista da soberania, o desafio do século XXI é o da construção da paz interior, da justiça histórica e da aceitação das múltiplas memórias que compõem a grande nação angolana.
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Imagem: © Governo de Angola
