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Sexta-feira, Dezembro 12, 2025

A Arte do Lixo: Pekiwa, Portas, Madeira e Mar

E se o lixo pudesse falar que histórias nos contaria? Talvez nos falasse de histórias de abandono e de desperdício além de consumo desenfreado que devora recursos sem pensar no amanhã, ou talvez nos lembrasse que cada objecto carrega uma memória, um uso, uma vida anterior.Em África há artistas que ousam dar-lhe outra voz: a voz da beleza, da memória e da resistência cultural. São criadores que não vêem lixo, mas sim matéria-prima para a imaginação, símbolos de resistência e possibilidades infinitas. No lixo que a sociedade descarta, eles descobrem matéria-prima para reinventar a vida e inspirar comunidades inteiras.

A Arte do Lixo: Pekiwa, Portas, Madeira e Mar


Conheces os artistas africanos que transformam lixo em arte? Não? Então prepara-te para conhecer Pekiwa e descobrir uma das vozes mais originais de Moçambique e um dos movimentos criativos mais surpreendentes e inspiradores do continente. Num mundo onde o consumo excessivo, o abandono e o esquecimento muitas vezes se cruzam, surgem criadores que vêem beleza onde outros só vêem lixo.

Com uma mistura única de tradição, reinvenção e consciência ambiental, Pekiwa reutiliza portas antigas, madeira descartada, restos de barcos, linhas férreas e ferro velho, transformando-os em esculturas e objectos com uma identidade nova que falam de memória, diferença e persistência.

Este é o 12.º artigo da nova série de 17, desta vez dedicada a estes visionários que não só resgatam materiais esquecidos, como também reinventam a forma de pensar sobre a arte, a sustentabilidade e o futuro do planeta. Cada peça é uma prova de resistência, criatividade e ligação às comunidades, mostrando que daquilo que parecia perdido pode nascer algo belo e transformador.

Se procuras inspiração, inovação e uma perspectiva diferente sobre o que a arte pode ser, não percas esta viagem. Vais ficar a conhecer um artista que respira a possibilidade de reconstrução, de valorização do que foi rejeitado e da urgência em preservar memórias mostrando que em África se desafia os limites do possível é um palco vibrante da arte contemporânea feita a partir do inesperado: o lixo.


Pekiwa


(20251129) A Arte do Lixo Pekiwa, Portas, Madeira e Mar
Imagem: © 2023 Universidade do Minho

Nelson Augusto Carlos Ferreira — que usa o nome artístico de Pekiwa — nasceu em Maputo a 30 de Janeiro de 1977 e cresceu num ambiente onde a madeira fazia parte da respiração diária. O pai, Govane, era escultor e mantinha uma pequena oficina onde troncos brutos se transformavam lentamente em figuras humanas, animais e objectos rituais.

Para o menino, esse espaço era uma espécie de escola silenciosa. Passava horas a observar o movimento das mãos do pai, a forma como a goiva entrava na madeira, o pó que se acumulava no chão como se fosse uma espécie de tempo visível.

Ali percebeu que a escultura não era apenas trabalho manual, era também memória e carácter, porque cada escolha de corte implicava uma maneira de olhar o mundo. Apesar dessa convivência íntima com a arte, Govane nunca encorajou abertamente o filho a seguir o mesmo caminho, ciente das dificuldades materiais e da instabilidade do mercado.

Pekiwa sentia esse receio, mas entendia que a vocação não desaparecia. Continuou a experimentar discretamente, aproveitando sobras de madeira e fragmentos que encontrava nos bairros antigos de Maputo. A viagem à Ilha de Moçambique em 2003 funcionou como um despertar definitivo.

Confrontado com barcos abandonados e tábuas corroídas pelo sal, compreendeu que aqueles materiais traziam consigo histórias inteiras. Ali consolidou a ideia de que o seu caminho passaria pela recuperação do que fora deixado para trás, marcando o nascimento da sua arte.

Trajectória e formação


A sua formação fez-se sobretudo fora das escolas formais. A oficina do pai ofereceu-lhe uma base sólida de técnicas tradicionais, mas foi a curiosidade que o levou a caminhos próprios. Ainda jovem, começou a afastar-se das peças mais convencionais, experimentando madeiras marcadas pelo uso anterior, como portas partidas e janelas de casas antigas.

Nessa fase, percebeu que o desgaste natural podia funcionar como desenho prévio, quase como se o tempo fosse co-autor da obra. Durante a década de 1990, integrou várias exposições colectivas e participou em workshops onde cruzou experiências com outros artistas moçambicanos.

Essas mostras permitiram-lhe testar escalas diferentes e entender que a reutilização de materiais era um gesto conceptual. Em 2002, apresentou A Sombra da Árvore, a sua primeira exposição individual de peso, onde já era evidente o interesse por madeira envelhecida e portas reaproveitadas.

Nos anos seguintes, aprofundou essa direcção em projectos como Ilha de Moçambique: Bela por Dentro (2004) e Do Degradado para o Belo (2005), transformando fragmentos arquitectónicos em figuras estilizadas. Mais tarde, desenvolveu projectos centrados em barcos e elementos marítimos, consolidando a ligação simbólica entre escultura e oceano.

A exposição Filhas do Mar em 2023 marcou a plena maturidade da sua trajectória, afirmando Pekiwa como uma das vozes mais consistentes da escultura moçambicana feita a partir do lixo.


A Obra de Pekiwa


(20251129) A Arte do Lixo Pekiwa, Portas, Madeira e Mar
Imagem: © 2023 Camões – Instituto da Cooperação e da Lingua

O trabalho de Pekiwa distingue-se pela reutilização consciente e criativa de materiais como madeira antiga — portas, caixilhos, restos de barcos — combinados com ferros reaproveitados e linhas férreas, no seu empenho em dar-lhes nova vida.

Com esses elementos, modela figuras humanas, barcas, objectos simbólicos e composições escultóricas que misturam o verniz tradicional, ferragens antigas e marcas do uso prévio. O resultado são obras com forte presença material e simbólica: cada linha da madeira, cada nó, cada prego exposto, tudo carrega história.

Não há tentativa de “embelezar” o material; ao contrário, Pekiwa realça as cicatrizes da idade, do tempo, da água salgada e do abandono, convertendo o desgaste em estética e o ruído do passado em narrativa visual.

Recentemente, a exposição individual Filhas do Mar, inaugurada em 2023 no centro cultural do Instituto Camões, em Maputo, apresentou esculturas nascidas da combinação de madeira costeira e do ferro urbano recuperado.

A mostra destacou a erosão natural nos materiais e problematizou a destruição ambiental e a memória do povo ligado ao oceano. Pekiwa define a sua prática como “ver beleza no que a sociedade despreza”, convidando a repensar o valor da memória material.

O Seu Simbolismo


O simbolismo na obra de Pekiwa é profundo. Para ele, cada porta antiga, tábua gasta ou ferro enferrujado é um depósito de memória — de vidas, casas, navios, dias de sal e de chuva, de gente que lá viveu, trabalhou ou partiu. Ao resgatar esses materiais do abandono, o artista devolve-lhes dignidade e história.

A madeira, antes lixo, torna-se pincel da memória colectiva, do mar, das migrações e das construções, de uma cultura moçambicana que resiste e se reinventa. A junção de madeiras e ferros de diferentes contextos cria um híbrido que é uma metáfora viva da reconstrução e da persistência.

Na exposição Filhas do Mar, o uso de madeira corroída e ferros retorcidos simboliza a fragilidade da natureza face à acção humana e à poluição, mas também à resistência: mesmo o que o mar consome pode renascer sob outra forma. O acto de reciclar, para Pekiwa, transcende o ecológico, assumindo uma dimensão política e existencial.

Ele questiona sistemas de consumo e desperdicio, propondo um olhar crítico sobre a relação entre a sociedade, a tradição, a memória e o ambiente, transformando detritos em diálogos e lixo em identidade.


Mensagem Critica


(20251129) A Arte do Lixo Pekiwa, Portas, Madeira e Mar
Imagem: © 2023 Camões – Instituto da Cooperação e da Lingua

A arte de Pekiwa transmite múltiplas e interligadas mensagens. No plano da reutilização, ao transformar madeira abandonada, sucata e ferro velho em arte, ele demonstra que o que muitos consideram lixo pode ser reconvertido em valor — estético, simbólico e cultural.

Culturalmente, Pekiwa resgata narrativas das comunidades costeiras, pescadores e migrantes, fazendo da escultura um instrumento de memória. Devolve identidade a objectos anónimos, colocando o passado recuperado em diálogo com o presente e convidando à reflexão sobre pertença e história colectiva.

Socialmente, a sua obra destaca desigualdades e abandono, pois muitas das madeiras provêm de casas destruídas ou comunidades marginalizadas. A arte funciona como denúncia da negligência social e do esquecimento histórico, ao mesmo tempo que representa esperança, persistência e reconstrução.

No plano ambiental, Pekiwa alerta para a poluição, o desrespeito pelo mar e a contaminação das costas. A exposição Filhas do Mar usa madeiras e ferros corroídos como símbolo da relação conflituosa entre o homem e a natureza.

Finalmente, a sua obra transmite uma mensagem de valorização do lixo: a arte pode nascer do comum e do esquecido, transformando o invisível em visível, o desprezível em digno e o descartado em legado.

Memória Reconstruída


A obra de Pekiwa insere-se num tempo em que a questão do lixo, da memória e da identidade é urgente, tanto localmente como mundialmente. Em sociedades com urbanização rápida, migração e abandono arquitectónico, a sua escultura surge como um acto de resistência e reconciliação.

Pekiwa demonstra que a arte africana contemporânea pode ser vernacular e universal: feita de materiais moçambicanos e histórias de comunidades costeiras, mas com significado para qualquer pessoa sensível à destruição ambiental, à perda de memória e à urgência de preservar o passado.

O seu trabalho lembra-nos que a memória não reside apenas em livros ou monumentos, mas também em portas velhas, barcos abandonados e tábuas gastas. Transformar esses materiais em arte é um acto de dignidade, resgate e humanidade.


Conclusão


Pekiwa é prova viva de que a criatividade africana se reinventa e reconstrói. Através de madeira recuperada, ferros abandonados e história material, o artista moçambicano ergue uma arte de resistencia, memória e consciência. As suas esculturas são convites à contemplação, reflexão e à acção.

Ele não esconde as cicatrizes da matéria; assume-as e transforma-as em beleza, significado e voz. Num mundo que avança vorazmente, Pekiwa mostra que o que muitos chamam de lixo pode ser o começo de uma nova narrativa e que reciclar é um acto poético, político e cultural que hoje, mais do que nunca, se revela fundamental.

Seguir o percurso de Pekiwa é aceitar que a arte pode nascer do que o mundo rejeita que a beleza pode estar na dureza da madeira corroída e no ruído do ferro enferrujado e que a memória pode sobreviver mesmo nos fragmentos. Num contexto onde o ambientalismo, a preservação cultural e a crítica social são urgentes, a obra de Pekiwa não é apenas pertinente, é essencial.

 


O que achas da arte de Pekiwa? Queremos saber a tua opinião, não hesites em comentar e se gostaste do artigo partilha e dá um “like/gosto”.

 

Imagem: © 2025 Francisco Lopes-Santos
Francisco Lopes-Santos

Atleta Olímpico, tem um Doutoramento em Antropologia da Arte e dois Mestrados, um em Treino de Alto Rendimento e outro em Belas Artes, além de vários cursos de especialização em diversas áreas. Escritor prolifero, já publicou vários livros de Poesia e de Ficção, além de vários ensaios e artigos científicos.

Francisco Lopes-Santos
Francisco Lopes-Santoshttp://xesko.webs.com
Atleta Olímpico, tem um Doutoramento em Antropologia da Arte e dois Mestrados, um em Treino de Alto Rendimento e outro em Belas Artes, além de vários cursos de especialização em diversas áreas. Escritor prolifero, já publicou vários livros de Poesia e de Ficção, além de vários ensaios e artigos científicos.
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