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ToggleA Arte do Lixo: Pekiwa, Portas, Madeira e Mar
Conheces os artistas africanos que transformam lixo em arte? Não? Então prepara-te para conhecer Pekiwa e descobrir uma das vozes mais originais de Moçambique e um dos movimentos criativos mais surpreendentes e inspiradores do continente. Num mundo onde o consumo excessivo, o abandono e o esquecimento muitas vezes se cruzam, surgem criadores que vêem beleza onde outros só vêem lixo.
Com uma mistura única de tradição, reinvenção e consciência ambiental, Pekiwa reutiliza portas antigas, madeira descartada, restos de barcos, linhas férreas e ferro velho, transformando-os em esculturas e objectos com uma identidade nova que falam de memória, diferença e persistência.
Este é o 12.º artigo da nova série de 17, desta vez dedicada a estes visionários que não só resgatam materiais esquecidos, como também reinventam a forma de pensar sobre a arte, a sustentabilidade e o futuro do planeta. Cada peça é uma prova de resistência, criatividade e ligação às comunidades, mostrando que daquilo que parecia perdido pode nascer algo belo e transformador.
Se procuras inspiração, inovação e uma perspectiva diferente sobre o que a arte pode ser, não percas esta viagem. Vais ficar a conhecer um artista que respira a possibilidade de reconstrução, de valorização do que foi rejeitado e da urgência em preservar memórias mostrando que em África se desafia os limites do possível é um palco vibrante da arte contemporânea feita a partir do inesperado: o lixo.
Pekiwa

Nelson Augusto Carlos Ferreira — que usa o nome artístico de Pekiwa — nasceu em Maputo a 30 de Janeiro de 1977 e cresceu num ambiente onde a madeira fazia parte da respiração diária. O pai, Govane, era escultor e mantinha uma pequena oficina onde troncos brutos se transformavam lentamente em figuras humanas, animais e objectos rituais.
Para o menino, esse espaço era uma espécie de escola silenciosa. Passava horas a observar o movimento das mãos do pai, a forma como a goiva entrava na madeira, o pó que se acumulava no chão como se fosse uma espécie de tempo visível.
Ali percebeu que a escultura não era apenas trabalho manual, era também memória e carácter, porque cada escolha de corte implicava uma maneira de olhar o mundo. Apesar dessa convivência íntima com a arte, Govane nunca encorajou abertamente o filho a seguir o mesmo caminho, ciente das dificuldades materiais e da instabilidade do mercado.
Pekiwa sentia esse receio, mas entendia que a vocação não desaparecia. Continuou a experimentar discretamente, aproveitando sobras de madeira e fragmentos que encontrava nos bairros antigos de Maputo. A viagem à Ilha de Moçambique em 2003 funcionou como um despertar definitivo.
Confrontado com barcos abandonados e tábuas corroídas pelo sal, compreendeu que aqueles materiais traziam consigo histórias inteiras. Ali consolidou a ideia de que o seu caminho passaria pela recuperação do que fora deixado para trás, marcando o nascimento da sua arte.
Trajectória e formação
A sua formação fez-se sobretudo fora das escolas formais. A oficina do pai ofereceu-lhe uma base sólida de técnicas tradicionais, mas foi a curiosidade que o levou a caminhos próprios. Ainda jovem, começou a afastar-se das peças mais convencionais, experimentando madeiras marcadas pelo uso anterior, como portas partidas e janelas de casas antigas.
Nessa fase, percebeu que o desgaste natural podia funcionar como desenho prévio, quase como se o tempo fosse co-autor da obra. Durante a década de 1990, integrou várias exposições colectivas e participou em workshops onde cruzou experiências com outros artistas moçambicanos.
Essas mostras permitiram-lhe testar escalas diferentes e entender que a reutilização de materiais era um gesto conceptual. Em 2002, apresentou A Sombra da Árvore, a sua primeira exposição individual de peso, onde já era evidente o interesse por madeira envelhecida e portas reaproveitadas.
Nos anos seguintes, aprofundou essa direcção em projectos como Ilha de Moçambique: Bela por Dentro (2004) e Do Degradado para o Belo (2005), transformando fragmentos arquitectónicos em figuras estilizadas. Mais tarde, desenvolveu projectos centrados em barcos e elementos marítimos, consolidando a ligação simbólica entre escultura e oceano.
A exposição Filhas do Mar em 2023 marcou a plena maturidade da sua trajectória, afirmando Pekiwa como uma das vozes mais consistentes da escultura moçambicana feita a partir do lixo.
A Obra de Pekiwa

O trabalho de Pekiwa distingue-se pela reutilização consciente e criativa de materiais como madeira antiga — portas, caixilhos, restos de barcos — combinados com ferros reaproveitados e linhas férreas, no seu empenho em dar-lhes nova vida.
Com esses elementos, modela figuras humanas, barcas, objectos simbólicos e composições escultóricas que misturam o verniz tradicional, ferragens antigas e marcas do uso prévio. O resultado são obras com forte presença material e simbólica: cada linha da madeira, cada nó, cada prego exposto, tudo carrega história.
Não há tentativa de “embelezar” o material; ao contrário, Pekiwa realça as cicatrizes da idade, do tempo, da água salgada e do abandono, convertendo o desgaste em estética e o ruído do passado em narrativa visual.
Recentemente, a exposição individual Filhas do Mar, inaugurada em 2023 no centro cultural do Instituto Camões, em Maputo, apresentou esculturas nascidas da combinação de madeira costeira e do ferro urbano recuperado.
A mostra destacou a erosão natural nos materiais e problematizou a destruição ambiental e a memória do povo ligado ao oceano. Pekiwa define a sua prática como “ver beleza no que a sociedade despreza”, convidando a repensar o valor da memória material.
O Seu Simbolismo
O simbolismo na obra de Pekiwa é profundo. Para ele, cada porta antiga, tábua gasta ou ferro enferrujado é um depósito de memória — de vidas, casas, navios, dias de sal e de chuva, de gente que lá viveu, trabalhou ou partiu. Ao resgatar esses materiais do abandono, o artista devolve-lhes dignidade e história.
A madeira, antes lixo, torna-se pincel da memória colectiva, do mar, das migrações e das construções, de uma cultura moçambicana que resiste e se reinventa. A junção de madeiras e ferros de diferentes contextos cria um híbrido que é uma metáfora viva da reconstrução e da persistência.
Na exposição Filhas do Mar, o uso de madeira corroída e ferros retorcidos simboliza a fragilidade da natureza face à acção humana e à poluição, mas também à resistência: mesmo o que o mar consome pode renascer sob outra forma. O acto de reciclar, para Pekiwa, transcende o ecológico, assumindo uma dimensão política e existencial.
Ele questiona sistemas de consumo e desperdicio, propondo um olhar crítico sobre a relação entre a sociedade, a tradição, a memória e o ambiente, transformando detritos em diálogos e lixo em identidade.
Mensagem Critica

A arte de Pekiwa transmite múltiplas e interligadas mensagens. No plano da reutilização, ao transformar madeira abandonada, sucata e ferro velho em arte, ele demonstra que o que muitos consideram lixo pode ser reconvertido em valor — estético, simbólico e cultural.
Culturalmente, Pekiwa resgata narrativas das comunidades costeiras, pescadores e migrantes, fazendo da escultura um instrumento de memória. Devolve identidade a objectos anónimos, colocando o passado recuperado em diálogo com o presente e convidando à reflexão sobre pertença e história colectiva.
Socialmente, a sua obra destaca desigualdades e abandono, pois muitas das madeiras provêm de casas destruídas ou comunidades marginalizadas. A arte funciona como denúncia da negligência social e do esquecimento histórico, ao mesmo tempo que representa esperança, persistência e reconstrução.
No plano ambiental, Pekiwa alerta para a poluição, o desrespeito pelo mar e a contaminação das costas. A exposição Filhas do Mar usa madeiras e ferros corroídos como símbolo da relação conflituosa entre o homem e a natureza.
Finalmente, a sua obra transmite uma mensagem de valorização do lixo: a arte pode nascer do comum e do esquecido, transformando o invisível em visível, o desprezível em digno e o descartado em legado.
Memória Reconstruída
A obra de Pekiwa insere-se num tempo em que a questão do lixo, da memória e da identidade é urgente, tanto localmente como mundialmente. Em sociedades com urbanização rápida, migração e abandono arquitectónico, a sua escultura surge como um acto de resistência e reconciliação.
Pekiwa demonstra que a arte africana contemporânea pode ser vernacular e universal: feita de materiais moçambicanos e histórias de comunidades costeiras, mas com significado para qualquer pessoa sensível à destruição ambiental, à perda de memória e à urgência de preservar o passado.
O seu trabalho lembra-nos que a memória não reside apenas em livros ou monumentos, mas também em portas velhas, barcos abandonados e tábuas gastas. Transformar esses materiais em arte é um acto de dignidade, resgate e humanidade.
Conclusão
Pekiwa é prova viva de que a criatividade africana se reinventa e reconstrói. Através de madeira recuperada, ferros abandonados e história material, o artista moçambicano ergue uma arte de resistencia, memória e consciência. As suas esculturas são convites à contemplação, reflexão e à acção.
Ele não esconde as cicatrizes da matéria; assume-as e transforma-as em beleza, significado e voz. Num mundo que avança vorazmente, Pekiwa mostra que o que muitos chamam de lixo pode ser o começo de uma nova narrativa e que reciclar é um acto poético, político e cultural que hoje, mais do que nunca, se revela fundamental.
Seguir o percurso de Pekiwa é aceitar que a arte pode nascer do que o mundo rejeita que a beleza pode estar na dureza da madeira corroída e no ruído do ferro enferrujado e que a memória pode sobreviver mesmo nos fragmentos. Num contexto onde o ambientalismo, a preservação cultural e a crítica social são urgentes, a obra de Pekiwa não é apenas pertinente, é essencial.
O que achas da arte de Pekiwa? Queremos saber a tua opinião, não hesites em comentar e se gostaste do artigo partilha e dá um “like/gosto”.
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Imagem: © 2025 Francisco Lopes-Santos
