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ToggleA Arte Do Lixo: Henri Sagna E O Mosquito Que Fala
Conheces os artistas africanos que transformam lixo em arte? Não? Então prepara-te para conhecer Henri Sagna, do Senegal que transforma objectos recuperados em esculturas, murais e instalações artísticas com uma mensagem forte, encontrando nestes restos, uma forma de esperança e uma voz de denúncia.
Com uma mistura única de tradição, inovação, monumentalidade, crítica social e consciência ambiental, estes artistas reciclam metais, plásticos, tecidos, objectos abandonados, restos de tecnologia e até armas, dando-lhes uma segunda vida sob a forma de esculturas, instalações e obras de arte mostrando como em África, os resíduos e o improvável podem ser matéria-prima de beleza, reflexão e identidade.
Neste quinto artigo, de uma série de 17, dedicada a criadores visionários que reinventam o conceito de arte a partir de materiais descartados, vamos conhecer um artista que transformou a reciclagem em símbolos de espiritualidade. A sua arte é um manifesto ambiental, onde revela que o desperdício pode renascer como símbolo de beleza e resistência.
Se procuras inspiração, inovação e uma perspectiva diferente sobre o que a arte pode ser e por que razão África está no centro das grandes discussões mundiais, não percas esta viagem. Nestes artigos, vais ficar a conhecer artistas que desafiam os limites do possível e que fazem de África um palco vibrante da arte contemporânea feita a partir do inesperado: o lixo.
Henri Sagna

Henri Sagna nasceu em Dakar, Senegal, em 1973. Estudou na École nationale des arts de Dakar, na secção de Ambiente, um percurso que lhe proporcionou formação técnica e sensibilidade para temas críticos ligados à ecologia e à sociedade.
Após a sua graduação, em 2005, Henri Sagna foi distinguido com o Premier Prix no sexto Salon national des artistes plasticiens sénégalais, reconhecimento que sublinhou logo cedo o seu potencial artístico. Sagna vive e trabalha em Dakar, onde desenvolve uma prática artística que ele mesmo costuma descrever como escultor-recycleur, ou seja, escultor que reutiliza materiais.
Ele colecciona objectos descartados, resíduos, restos urbanos e industriais, reconfigurando-os em obras visuais marcantes, frequentemente instaladas em espaços públicos, galerias ou nos subúrbios. Um aspecto frequente do seu trabalho é a abordagem ao mosquito, sobretudo aquele que transmite a malária, transformando este insecto num símbolo estético e político.
O trabalho de Henri Sagna é dominado pela materialidade do reciclado: fios de arame galvanizado, garrafas de plástico, celulóide para asas, peças metálicas, entre outros objectos de uso doméstico e urbano.
Ele constrói esculturas, instalações e murais nos quais as formas dos mosquitos aparecem de modo recorrente, com tamanhos exagerados, pernas longas, asas delicadas feitas de materiais translúcidos. Usa frequentemente tecidos, objectos reciclados, como as redes mosquiteiras, para evocar protecção e vulnerabilidade.
A ideia de reutilizar resíduos não é apenas técnica, mas profundamente simbólica em Sagna. Ao fazer mosquitos gigantes feitos de materiais reciclados, ele chama a atenção para a malária, doença que continua a causar elevadas taxas de mortalidade em muitas partes de África.
Mas vai além: o mosquito deixa de ser apenas vector de doença, torna-se metáfora do humano, do invisível, do que entra nas casas, do que resiste apesar das protecções imperfeitas.
Trajectória e Formação
Sagna formou-se na École nationale des arts de Dakar, secção Ambiente, o que o expôs desde cedo a questões de ecologia aplicadas à arte. Após os seus estudos, ganhou o prémio no Salon nacional des artistes plasticiens em 2005, reconhecimento institucional no Senegal.
Desde então, participou em múltiplas exposições colectivas — murais, instalações, esculturas — tanto no Senegal como fora dele. Um exemplo é a exposição “Sénégal contemporain” no Museu Dapper, em Paris, em 2006, onde ele montou uma sala dedicada aos seus mosquitos e redes mosquiteiras, usando materiais reciclados, fios galvanizados, asas em celluloid, garrafas de soda.
Também expos em festivais como o Partcours organizado pelo British Council, em 2016, onde apresentou instalações que combinam som, vídeo, fotografia e materiais reciclados, explorando temas de diálogo inter-religioso, justiça social, identidade e ambiente.
O Simbolismo de Henri Sagna

O trabalho de Henri Sagna é, acima de tudo, uma meditação visual sobre o poder do invisível. O mosquito, figura recorrente e obsessiva na sua produção, transcende o mero insecto: torna-se símbolo da vulnerabilidade colectiva, metáfora da doença, da desigualdade e da negligência social.
Ao transformar este pequeno ser em esculturas monumentais, o artista senegalês obriga-nos a confrontar aquilo que preferimos ignorar — a precariedade da vida, o falhanço das políticas públicas e o peso do desperdício. Feitas de redes mosquiteiras, arames, garrafas plásticas e fios metálicos, as suas criações materializam o paradoxo entre fragilidade e resistência.
O mosquito, que normalmente passa despercebido, é aqui elevado à escala de monumento, um gesto que inverte o olhar: o minúsculo torna-se imenso, o descartável ganha dignidade. Essa ampliação simbólica transforma o lixo em espelho do humano — o corpo social ferido, o tecido urbano em decomposição, a promessa de progresso que se desfaz em desatenção e pobreza.
A estética do desperdício que atravessa o seu trabalho adquire também uma dimensão espiritual. Cada objecto reciclado carrega vestígios da vida anterior — um fragmento de perfume, um fio de cobre, uma tampa de garrafa — que se convertem em elementos poéticos de uma narrativa sobre o Senegal contemporâneo.
Recolher, limpar e montar é, para Sagna, um acto de reparação simbólica: devolver sentido ao que foi esquecido, curar o que a sociedade descartou. Nesse gesto, o artista torna-se uma espécie de arqueólogo do presente, reconstruindo a memória colectiva a partir do detrito urbano.
A Mensagem
O mosquito, tema recorrente na sua obra há mais de uma década, simboliza tanto a ameaça sanitária da malária como a injustiça social. As suas asas translúcidas, moldadas com plásticos reciclados, lembram tecidos rituais ou estruturas religiosas; o corpo metálico, pesado e articulado, parece pronto para o voo — uma presença inquietante que combina beleza e desconforto.
O insecto, que normalmente carrega a morte, torna-se nas mãos de Sagna um mensageiro da consciência: recorda-nos que a fragilidade de uns é o reflexo da indiferença de outros. O discurso de Sagna é simultaneamente poético e político. Ao recolher lixo urbano, ele denuncia a economia do desperdício mundial e o modo como o excesso do consumo do Norte se converte em abandono no Sul.
Cada material reaproveitado é prova dessa interdependência injusta. As suas obras questionam a ilusão de progresso, revelando como a modernidade continua a produzir exclusão. O mosquito, minúsculo, mas letal, é também alegoria do sistema: pequeno agente que carrega, sem culpa própria, as consequências de um desequilíbrio planetário.
Espiritualidade e Diálogo
A dimensão espiritual da obra de Henri Sagna é discreta, mas profunda. Através das suas instalações, o artista propõe pontes entre comunidades e religiões, buscando reconciliar diferenças históricas e culturais.
A peça “Another World is Possible”, apresentada em várias exposições internacionais, é um exemplo emblemático: nela, estruturas inspiradas em mesquitas e igrejas coexistem sob um mesmo abrigo simbólico, evocando a possibilidade de tolerância e paz duradoura.
Para Sagna, a arte não deve oferecer respostas, mas provocar perguntas. Cada escultura convida à reflexão sobre fé, solidariedade e convivência num continente marcado por divisões e assimetrias. Ele acredita que o artista pode desempenhar um papel semelhante ao das suas mosquiteiras simbólicas — membranas entre o corpo e o exterior, entre o humano e o espiritual, entre o visível e o invisível.
Essa capacidade de mediar mundos distintos — o religioso e o social, o ecológico e o ético — define a singularidade da sua prática. O seu interesse pelo diálogo inter-religioso reflecte uma compreensão profunda da realidade senegalesa, onde muçulmanos e cristãos partilham espaço e história.
Ao representar essas relações por meio de estruturas construídas com materiais reciclados, Sagna sugere que a reconciliação espiritual e a regeneração material são, afinal, partes do mesmo processo: transformar o velho em novo, o rejeitado em sagrado.
Comunidade e Educação
Tal como outros criadores comprometidos com o contexto social, Henri Sagna acredita que a arte deve servir a comunidade. Em bairros de Dakar e periferias próximas, promove oficinas e projectos educativos que envolvem jovens na recolha e transformação de resíduos, transformando o acto de reciclar em ferramenta de aprendizagem e geração de rendimento.
A arte, nesse contexto, deixa de ser privilégio para se tornar instrumento de formação e autonomia. O processo colaborativo é central no seu método: Sagna trabalha frequentemente com catadores e moradores locais, que o ajudam a recolher e separar materiais. Esta parceria cria redes de solidariedade e microeconomias alternativas, demonstrando que sustentabilidade e inclusão social podem coexistir.
Mais do que ensinar técnicas, ele incentiva a mudança de mentalidade — a percepção de que o que é considerado lixo pode tornar-se valor cultural e económico. Em colaboração com escolas e centros culturais, Sagna conduz actividades de sensibilização ambiental, mostrando às crianças como o lixo pode ser recurso e a arte, uma forma de expressão colectiva.
A sua missão é inspirar uma geração que veja no reaproveitamento não apenas necessidade, mas possibilidade criativa. Ao fazê-lo, o artista cumpre um papel de mediador entre cultura e ecologia, oferecendo à juventude caminhos de imaginação e sustentabilidade.
Urgência e Esperança
No centro do trabalho de Henri Sagna está uma tensão constante entre alerta e esperança. As suas esculturas falam de dor, de negligência, de morte evitável, mas também de regeneração e possibilidade. A ampliação do mosquito é, simultaneamente, grito e prece: um alerta sobre doenças negligenciadas e desigualdade, e uma invocação de cura colectiva.
Cada obra é uma mensagem sobre a necessidade de cuidar — do corpo, do ambiente, da sociedade. Ao utilizar resíduos do consumo moderno, Sagna confronta-nos com a contradição entre progresso tecnológico e abandono humano. As suas peças revelam que o desenvolvimento sem ética produz as mesmas fissuras que as redes mosquiteiras rasgadas das suas esculturas.
No entanto, mesmo ao expor a ferida, o artista sugere remédio: a beleza. Para ele, a estética é uma forma de reconciliação — um modo de reencantar o olhar, de despertar sensibilidade onde há indiferença. Assim, os seus mosquitos, por mais inquietantes que pareçam, irradiam cor, luz e delicadeza.
São criaturas nascidas do lixo, mas dotadas de graça. A arte de Sagna não é de desespero, mas de renascimento: faz do desperdício monumento, da fragilidade força, do ordinário milagre. No gesto de transformar lixo em arte, o artista senegalês propõe-nos uma ética de sobrevivência e um horizonte de esperança — lembrando que, mesmo num mundo doente, a beleza ainda pode ser remédio.
Exposições e Reconhecimento

Henri Sagna construiu uma trajectória de visibilidade firme e coerente, marcada por presenças em mostras e festivais que cruzam continentes. O seu reconhecimento começou no Senegal, com a atribuição do Premier Prix no Salon National des Artistes Plasticiens em 2005 — distinção que confirmou o valor crítico e técnico do seu trabalho com materiais reciclados e abriu caminho a um percurso internacional.
No mesmo ano, apresentou obras em Aigues-Morte, em França, e participou na Semana Cultural do Burkina Fasso, sinal de uma circulação precoce e de uma voz artística já consciente da dimensão pan-africana da sua mensagem. Mas seria em 2006, na exposição Sénégal Contemporain no Musée Dapper, em Paris, que Sagna se afirmaria definitivamente.
A instalação Les Voleurs d’âme II, composta por mosquitos monumentais feitos de fios metálicos, garrafas plásticas e redes mosquiteiras, simbolizava a luta contra a malária e a vulnerabilidade humana face às forças invisíveis da doença e da desigualdade. A peça, de uma beleza inquietante, consagrou a sua entrada no panorama artístico internacional.
Nos anos seguintes, o artista reforçou a sua presença em projectos internacionais de grande visibilidade. Em 2007, integrou Urban Sculpture em Montreal, e em 2008, participou no projecto Détour, promovido pela Moleskine, no Museum der Dinge, em Berlim — duas exposições que consolidaram o seu nome no cruzamento entre arte pública, ecologia e crítica social.
A sua linguagem visual, que transforma lixo em metáfora da sobrevivência, passou a ser lida como uma forma de resistência estética e política. Em 2009, Sagna representou o Senegal no Festival Panafricano de Argel, levando o seu discurso visual sobre doença, desigualdade e consciência ambiental a um contexto continental.
O Reconhecimento
O reconhecimento crítico ampliou-se com as sucessivas participações no Dak’Art – Bienal de Arte Contemporânea Africana, onde as suas instalações monumentais atraíram atenção pela capacidade de unir activismo e poesia visual.
Na edição de 2012, o público e a crítica destacaram novamente Voleurs d’âme II, reinterpretada como símbolo da luta contra o esquecimento e a indiferença. Em 2016, a sua presença no Partcours, iniciativa apoiada pelo British Council, reafirmou a dimensão educativa e colaborativa da sua prática, aproximando arte e consciência social.
Hoje, as esculturas e instalações de Sagna figuram em exposições itinerantes dedicadas à arte de reciclagem e sustentabilidade, além de integrarem colecções públicas e privadas em França, no Senegal e em diversos países africanos.
Este percurso, construído com coerência e profundidade, consolidou Henri Sagna como uma das vozes mais relevantes da arte contemporânea africana. A sua obra, que une sustentabilidade, activismo e beleza, ultrapassa fronteiras e reafirma a arte como ferramenta de transformação e diálogo.
Reflexão Final

A obra de Henri Sagna ocupa um lugar de destaque na arte africana contemporânea que faz do reaproveitamento uma forma de discurso estético, social e político. Reciclar, para ele, é mais do que um gesto ecológico: é acto de resistência, memória e transformação.
As suas esculturas de mosquitos — frágeis na aparência e monumentais na mensagem — revelam aquilo que a sociedade prefere ignorar: a doença, o lixo, a desigualdade e a vulnerabilidade humana. Ao dar nova vida ao descartado, Sagna converte resíduos em poesia visual e consciência colectiva.
No Senegal, onde a escassez de recursos convive com o excesso de desperdício, o artista encontra nas sobras o ponto de partida para a criação e a crítica. O mosquito, símbolo recorrente na sua obra há quase duas décadas, é metáfora de sobrevivência e resistência. Através dele, Sagna une a urgência sanitária à reflexão sobre justiça social, dignidade e responsabilidade partilhada.
Parte de uma geração de criadores africanos que colocam a sustentabilidade no centro da expressão artística, Sagna mantém uma voz independente, mais próxima das comunidades do que do mercado. As suas obras respiram o mesmo ar que os bairros de onde nascem, e é essa autenticidade que lhes confere alcance universal.
O impacto do seu trabalho ultrapassa galerias e bienais. Medem-se pelos jovens que forma, pelas oficinas que promove e pelo diálogo que estabelece entre arte, ambiente e inclusão social. Ao transformar lixo em monumento e escassez em possibilidade, Henri Sagna demonstra que a arte africana contemporânea não é derivativa nem periférica — é originária, necessária e profundamente humana.
Conclusão
O legado de Henri Sagna ultrapassa a forma e o material: reside na capacidade de transformar o efémero em permanente e o insignificante em símbolo. O artista senegalês faz do acto de criar um gesto de reconciliação entre o humano e o ambiente, entre o visível e o esquecido.
As suas esculturas não são apenas objectos estéticos — são lugares de memória e pensamento, onde o lixo ganha voz e a matéria reencontra o espírito.
Sagna representa uma geração de criadores africanos que reinventam o sentido da arte contemporânea, fundindo tradição, ecologia e consciência social. Ao transformar resíduos em beleza e dor em lucidez, ele propõe uma ética da criação que dialoga com o mundo sem perder as suas raízes.
O seu exemplo inspira jovens artistas que vêem na arte não um refúgio, mas uma ferramenta de resistência e reconstrução colectiva. Em tempos de crise ambiental e desumanização crescente, o trabalho de Sagna recorda-nos que a arte pode ser acto político e espiritual — uma ponte entre a destruição e a esperança, entre o que se perde e o que renasce.
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Imagem: © 2025 Francisco Lopes-Santos