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Quinta-feira, Outubro 2, 2025

A Arte do Lixo: El Anatsui, Entre Tradição e Globalização

E se o lixo pudesse falar que histórias nos contaria? Talvez nos falasse de histórias de abandono e de desperdício além de consumo desenfreado que devora recursos sem pensar no amanhã, ou talvez nos lembrasse que cada objecto carrega uma memória, um uso, uma vida anterior. Em África há artistas que ousam dar-lhe outra voz: a voz da beleza, da memória e da resistência cultural. São criadores que não vêem lixo, mas sim matéria-prima para a imaginação, símbolos de resistência e possibilidades infinitas. No lixo que a sociedade descarta, eles descobrem matéria-prima para reinventar a vida e inspirar comunidades inteiras.

A Arte do Lixo: El Anatsui, Entre Tradição e Globalização


Conheces os artistas africanos que transformam lixo em arte? Não? Então prepara-te para conhecer El Anatsui, um dos nomes mais consagrados da arte contemporânea mundial, que a partir de sucata metálica, tampas de alumínio e fios de cobre cria obras monumentais que evocam tecidos tradicionais africanos, mas ao mesmo tempo falam de colonialismo, consumo e globalização.

Com uma mistura única de tradição, inovação, monumentalidade, crítica social e consciência ambiental, estes artistas reciclam metais, plásticos, tecidos, objectos abandonados, restos de tecnologia e até armas, dando-lhes uma segunda vida sob a forma de esculturas, instalações e obras de arte mostrando como em África, os resíduos e o improvável podem ser matéria-prima de beleza, reflexão e identidade.

Neste terceiro artigo, de uma série de 17, dedicada a criadores visionários que reinventam o conceito de arte a partir de materiais descartados, vamos conhecer um artista que elevou a reciclagem a uma escala épica. Na Nigéria, onde fez carreira, El Anatsui transforma lixo em mantos metálicos monumentais que cobrem paredes inteiras de museus e galerias.

Se procuras inspiração, inovação e uma perspectiva diferente sobre o que a arte pode ser e por que razão África está no centro das grandes discussões mundiais, não percas esta viagem. Nestes artigos, vais ficar a conhecer artistas que desafiam os limites do possível e que fazem de África um palco vibrante da arte contemporânea feita a partir do inesperado: o lixo.


El Anatsui


(20250927) A Arte do Lixo El Anatsui, Entre Tradição e Globalização
Imagem: © 2015 Éric Sander

A história da arte contemporânea africana não pode ser contada sem mencionar o nome de El Anatsui, um artista que transformou o modo como o mundo olha para o “lixo”.

Nascido em Anyako, Gana, em 1944, El Anatsui soube reinventar os limites da escultura e das instalações ao trabalhar com materiais descartados, como tampas de garrafas, alumínio e metais oxidados, convertendo-os em peças monumentais que enchem os maiores museus e galerias do planeta.

A sua obra, profundamente enraizada na história africana, no trauma do colonialismo e na memória da escravatura, consegue também dialogar com questões globais como o consumismo, a reciclagem, a identidade e a sustentabilidade.

O que para muitos não passaria de resíduos sem valor – aquilo que chamamos lixo – torna-se, nas mãos de El Anatsui, em tapetes cintilantes, mantos dourados e murais colossais que parecem respirar e mover-se com a luz. A sua estética é feita de fragmentos, mas a sua mensagem é coesa: a arte pode nascer de onde menos se espera e pode ressignificar o passado para projectar o futuro.

El Anatsui cresceu numa pequena localidade costeira do Gana, numa família onde a tradição oral e a ligação à cultura Ewe moldaram desde cedo o seu olhar artístico. Estudou Belas-Artes no Kumasi College of Art, da Universidade de Ciências e Tecnologia do Gana, onde o contacto com a escultura em madeira lhe deu os primeiros instrumentos para desenvolver a sua linguagem criativa.

A Mudança Para a Nigéria


Nos anos 70, mudou-se para a Nigéria, onde iniciou a sua carreira como docente no Departamento de Belas-Artes da Universidade da Nigéria, em Nsukka. Ali, mergulhou nas tradições locais e na filosofia Nsukka Group, um movimento artístico que explorava símbolos úli – desenhos e inscrições tradicionais – aplicando-os à arte contemporânea.

Os primeiros trabalhos de El Anatsui foram marcados por esculturas em madeira, gravadas com padrões geométricos que evocavam narrativas ancestrais africanas. Mais tarde, começou a explorar cerâmica e os metais, sempre à procura de novas formas de articular a tradição e a modernidade.

Esta procura constante levou-o a transformar aquilo que era considerado inútil em matéria-prima para a criação artística. O lixo passou a ser a sua nova arma para combater a sociedade e a partir daí, nunca mais parou.

Lixo Transformado em Arte


O grande salto na carreira de El Anatsui deu-se quando começou a trabalhar com tampas de garrafas de bebidas alcoólicas descartadas, recolhidas em fábricas e lixeiras locais. Aparentemente insignificantes, estas peças metálicas tornaram-se os blocos fundamentais de um novo vocabulário artístico.

O artista cortava, achatava, dobrava e ligava manualmente cada fragmento com fios de cobre, criando vastos painéis flexíveis que lembram tanto tapeçarias tradicionais africanas como mantos régios.

Estas obras, de uma monumentalidade impressionante, podem atingir dezenas de metros de comprimento e largura. São penduradas em paredes, suspensas em tectos ou moldadas de acordo com o espaço da exposição, assumindo formas fluidas e orgânicas. Quando a luz incide sobre elas, revelam tonalidades que oscilam entre o dourado, o vermelho, o prateado e o castanho, numa verdadeira alquimia visual.

O lixo, na sua obra, é uma metáfora profunda. É simultaneamente ferida e cura: ferida, porque lembra as marcas de um passado de exploração; cura, porque se reinventa em beleza, dignidade e grandeza.


Reconhecimento Mundial


(20250927) A Arte do Lixo El Anatsui, Entre Tradição e Globalização
Imagem: © 2007 Courtesy of El Anatsui

A consagração internacional de El Anatsui começou nos anos 2000, quando as suas instalações monumentais chamaram a atenção da crítica e dos grandes curadores. O ponto de viragem foi a Bienal de Veneza de 2007, onde apresentou “Dusasa II”, uma obra gigantesca feita de tampas metálicas que se tornou um dos trabalhos mais comentados do evento.

Desde então, o seu percurso só cresceu. El Anatsui já expôs em instituições célebre como o Museum of Modern Art (MoMA) e o Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, o Tate Modern, em Londres, o Centre Pompidou, em Paris e o Museu Nacional de Arte Africana do Smithsonian, em Washington.

Em 2015, recebeu o Leão de Ouro pelo Conjunto da sua Obra na Bienal de Veneza, tornando-se o primeiro artista africano a receber tal distinção. Em 2019, foi agraciado com o Praemium Imperiale, considerado o “Nobel das Artes”, atribuído pela Associação de Arte do Japão.

O mercado da arte também reconheceu o seu valo. As obras de El Anatsui têm sido vendidas por milhões de dólares em leilões internacionais, colocando-o entre os artistas africanos mais valorizados de sempre. Mas, apesar do êxito comercial, o artista continua a viver e trabalhar em Nsukka, na Nigéria, fiel ao seu espaço de criação e à ligação com os estudantes que formou ao longo de décadas.


A Dimensão Africana


(20250927) A Arte do Lixo El Anatsui, Entre Tradição e Globalização
Imagem: © 2016 Chester Higgins Jr. / The New York Times

A obra de El Anatsui não pode ser compreendida fora do seu contexto africano. Cada peça é um mosaico de referências: à cultura Ewe, às tradições da tecelagem de kente no Gana, à história do colonialismo europeu e à memória da escravatura transatlântica.

A escolha do material não é inocente. As tampas das garrafas, ligadas ao consumo de bebidas alcoólicas, funciona como metáfora de um processo de dominação. Durante séculos, o álcool foi moeda de troca no comércio de escravos e, no período colonial, serviu como símbolo da penetração cultural ocidental.

Por isso, essas tampas metálicas, remetem à história do comércio colonial, onde o álcool desempenhou um papel central nas trocas e, muitas vezes, no tráfico de escravos. Ao reaproveitar este resíduo, El Anatsui faz mais do que reciclar o material, recicla também a memória, transformando-a em reflexão crítica.

Dessa forma, ao transformar o lixo em tapeçarias monumentais, El Anatsui devolve poder à narrativa africana, resignificando a memória colectiva. Além disso, a fluidez das suas obras que podem ser adaptadas a cada exposição, dialoga com a ideia de uma identidade africana em constante transformação: múltipla, móvel, resistente, mas sempre enraizada na memória.

Ao mesmo tempo, o artista não se limita ao local. A sua arte fala também do global: da cultura de consumo que gera toneladas de lixo, da urgência da reciclagem e da necessidade de repensar a sustentabilidade. El Anatsui é, portanto, um artista africano e universal. A sua mensagem atravessa fronteiras porque toca em questões que dizem respeito à humanidade como um todo.


Legado e Futuro


(20250927) A Arte do Lixo El Anatsui, Entre Tradição e Globalização
Imagem: © 2015 Éric Sander

Com mais de cinco décadas de carreira, El Anatsui tornou-se uma referência incontornável para as novas gerações de artistas africanos. Muitos vêem nele a prova de que a arte do continente pode dialogar de igual para igual com a produção internacional, sem perder a autenticidade das suas raízes.

Ao longo da sua carreira académica, formou dezenas de jovens artistas na Universidade da Nigéria, influenciando directamente uma nova vaga de criadores que exploram a reciclagem, as instalaçóes e a escultura contemporânea.

O seu legado é também institucional: hoje, museus de todo o mundo dedicam exposições à arte africana contemporânea, fenómeno ao qual El Anatsui deu um contributo decisivo. Ao quebrar o preconceito de que a arte africana estava confinada ao “artesanato” ou ao “exótico”, abriu caminho para o reconhecimento da sofisticação e profundidade da produção artística do continente.

No futuro, o nome de El Anatsui será lembrado como um dos grandes mestres da arte contemporânea mundial, ao lado de figuras como Ai Weiwei, Anselm Kiefer ou Louise Bourgeois. Mas, mais do que isso, será sempre reconhecido como o artista que mostrou ao mundo que até o lixo pode ser transformado em beleza e reflexão.


Conclusão


El Anatsui é, em si mesmo, uma metáfora do continente africano: resistente e criativo, capaz de transformar a adversidade em força. A sua obra recorda que os restos do passado – por mais dolorosos que sejam – podem ser reciclados em esperança e em futuro.

Com as suas tapeçarias de tampas metálicas, conseguiu erguer pontes entre a tradição africana e a arte contemporânea mundial, mostrando que o local e o universal não se excluem, mas dialogam. El Anatsui elevou o lixo à categoria de arte e em simultâneo elevou África ao centro da narrativa artística contemporânea, onde o seu lugar sempre deveria ter estado.

 


O que achas da história fantástica de El Anatsui? Queremos saber a tua opinião, não hesites em comentar e se gostaste do artigo partilha e dá um “like/gosto”.

 

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Imagem: © 2009 Andy Keate - Courtesy of El Anatsui, October Gallery and Jack Shainman Gallery
Francisco Lopes-Santos

Atleta Olímpico, tem um Doutoramento em Antropologia da Arte e dois Mestrados, um em Treino de Alto Rendimento e outro em Belas Artes, além de vários cursos de especialização em diversas áreas. Escritor prolifero, já publicou vários livros de Poesia e de Ficção, além de vários ensaios e artigos científicos.

Francisco Lopes-Santos
Francisco Lopes-Santoshttp://xesko.webs.com
Atleta Olímpico, tem um Doutoramento em Antropologia da Arte e dois Mestrados, um em Treino de Alto Rendimento e outro em Belas Artes, além de vários cursos de especialização em diversas áreas. Escritor prolifero, já publicou vários livros de Poesia e de Ficção, além de vários ensaios e artigos científicos.
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