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ToggleA Arte do Lixo: Dickens Otieno, Tecer Arte Com Latas De Metal
Conheces os artistas africanos que transformam lixo em arte? Não? Então prepara-te para conhecer Dickens Otieno e descobrir um dos movimentos criativos mais surpreendentes e inspiradores do continente. Num mundo onde o consumo excessivo e o desperdício crescem a olhos vistos, há vozes em África que encontram beleza onde outros só vêem abandono.
Com uma mistura única de tradição, inovação e consciência ambiental, estes artistas reciclam metais, plásticos, tecidos, objectos abandonados, restos de tecnologia e até armas, dando-lhes uma segunda vida sob a forma de esculturas, instalações e obras de arte que contam histórias poderosas.
Neste segundo artigo, de uma série de 17, desta vez dedicada a criadores visionários que resgatam materiais esquecidos, considerados como lixo, reinventando-o de forma a repensar a arte, a sustentabilidade e o futuro do planeta, vamos ficar a conhecer, um artista transforma latas em “tecido” mostrando como se transforma algo que parecia não ter interesse numa peça de arte completamente nova e bela.
Se procuras inspiração, inovação e uma perspectiva diferente sobre o que a arte pode ser, não percas esta viagem. Nestes artigos, vais ficar a conhecer artistas que desafiam os limites do possível e que fazem de África um palco vibrante da arte contemporânea feita a partir do inesperado: o lixo.
Dickens Otieno

Num mundo cada vez mais sufocado pelo consumo desenfreado e pela acumulação de resíduos, surge de Nairobi, capital do Quénia, uma voz artística que transforma aquilo que muitos descartam em peças de arte capazes de emocionar, educar e provocar reflexão.
Dickens Otieno, conhecido como o “Mabati-Tailor”, é hoje um dos nomes mais promissores da arte contemporânea africana. A sua história é a prova viva de que da sucata pode nascer beleza, da precariedade pode surgir inovação e que da memória pode emergir identidade.
O panorama artístico africano tem vindo a ser marcado, nos últimos anos, por uma crescente valorização de práticas sustentáveis, onde o uso de materiais reciclados se impõe como um caminho criativo e político. Nesse contexto, Dickens Otieno destaca-se como um artista singular.
O seu percurso não segue as linhas tradicionais: formado inicialmente em engenharia, incapaz de encontrar trabalho nessa área, descobriu nas latas de refrigerantes e de cerveja, o tecido que lhe permitiria costurar a sua própria linguagem estética.
Cada tira metálica que entrelaça guarda ecos da infância passada na loja de costura da mãe, dos padrões vibrantes de lesos e kitenges e da observação atenta das ruas, mercados e horizontes urbanos, onde viveu toda a sua vida.
As obras de Otieno são hoje reconhecidas em vários continentes, exibidas em galerias de prestígio, feiras internacionais e bienais de referência. Colaborou também com instituições que promovem a sustentabilidade e a educação artística, reforçando a sua posição enquanto artista comprometido não só com a estética, mas também com o papel social da arte.
Mais do que um criador, ele tornou-se um intérprete da sua própria cidade, Nairobi e da vida quotidiana do Quénia. Hoje, as suas obras fazem parte de colecções privadas e institucionais, solidificando a sua reputação como um dos mais inovadores artistas africanos da sua geração.
Da Engenharia à Arte

Dickens Otieno nasceu em Nairobi em 1979. A sua formação inicial foi em engenharia, mas, como acontece a muitos jovens africanos, a realidade do desemprego empurrou-o para outros caminhos. Incapaz de exercer a profissão para a qual estudara, procurou nas artes um espaço de reinvenção pessoal.
Começou por experimentar a pintura e a colagem, mas foi a relação com os materiais reciclados que o conduziu a uma descoberta transformadora. A primeira grande viragem aconteceu quando, entre deambulações pelas zonas industriais de Nairobi, se apercebeu da abundância de latas descartadas. A princípio, recolhia-as por curiosidade, observando as cores vivas e o potencial estético que escondiam.
Rapidamente percebeu que podia manipulá-las como se fossem tecidos, dobrando, cortando e entrelaçando-as até formar superfícies complexas e texturadas. O gesto de dobrar a lata, frágil, mas resistente, tornou-se uma metáfora da sua própria vida: moldar dificuldades até que se convertam em algo novo.
Foi nesse momento que nasceu a sua assinatura artística, feita de tapeçarias metálicas que evocam simultaneamente a tradição artesanal africana e a contemporaneidade urbana.
Parte fundamental da obra de Otieno encontra-se enraizada na memória afectiva. Cresceu na loja de costura da mãe, rodeado por panos coloridos que as clientes escolhiam para vestidos de festa, uniformes escolares ou fatos de cerimónia. Ali, entre as pilhas de tecido, absorveu inconscientemente as técnicas de repetição, a paciência do detalhe e a linguagem dos padrões.
Essa experiência, longe de se perder, ressurgiu quando começou a tecer as suas primeiras peças com tiras de alumínio. As tapeçarias metálicas lembram, à distância, tecidos tradicionais como o kitenge ou o leso, mas ao aproximar-se o observador descobre que não se trata de algodão nem seda, mas de centenas de pedaços de latas recicladas.
Tecer Metal Como Tecido

Para além da influência familiar, a paisagem urbana de Nairobi desempenhou um papel determinante. As cores dos mercados, as pilhas de objectos empilhados, o horizonte recortado por arranha-céus e a persistência da natureza que resiste ao asfalto surgem transfigurados nas suas obras.
Cada peça é, em parte, um retracto da cidade onde nasceu e cresceu, mas também um comentário crítico sobre consumismo, desperdício e identidade. O processo de criação de Dickens Otieno é rigoroso e demorado.
Tudo começa pela recolha das latas, geralmente em zonas industriais situadas a cerca de 20 minutos do seu estúdio, em Boro Boro. A selecção das cores é criteriosa, pois cada tom desempenhará um papel na tapeçaria final.
“Sou um escultor que trabalha com material reciclado como as latas de refrigerante ou de cerveja”.
“É por isso que costumo planear o meu trabalho antes de ir buscar os materiais, assim, sei que cores e tipos, vou precisar”.
Depois, as latas são limpas, cortadas e dobradas. Essa preparação é essencial, uma vez que o alumínio, apesar de leve, pode ser traiçoeiro: dobra-se com facilidade, mas também corta se não for manuseado com cuidado. De seguida, as tiras são unidas com uma malha de arame galvanizado, criando uma base estrutural sobre a qual o artista começa a “tecer”.
O gesto de entrelaçar cada tira lembra o trabalho dos tecelões tradicionais africanos, mas também evoca o labor das costureiras urbanas. O resultado são superfícies que tanto podem ser tapeçarias penduradas em uma parede, como esculturas tridimensionais ou até peças de vestuário.
Este método artesanal, minucioso e manual, contrasta com a produção em massa que caracteriza a indústria das bebidas cujas embalagens ele utiliza. Ao reciclar, Otieno propõe uma reflexão sobre a vida útil dos objectos, sobre o consumismo e sobre a possibilidade de reimaginar o descartável.
A Filosofia do “Mabati-Tailor”

A alcunha “Mabati-Tailor” que em suaíli significa “alfaiate do metal”, sintetiza perfeitamente a essência de Dickens Otieno. Ele cose, recorta e monta o alumínio como se estivesse a lidar com tecido, mas ao mesmo tempo resignifica um material associado ao desperdício.
A verdadeira magia acontece quando Otieno começa a tecer as tiras de alumínio desfiado com uma malha de arame. Ele une as tiras meticulosamente antes de as começar a tecer, criando texturas e padrões que são uma reminiscência das tapeçarias tradicionais feitas de materiais naturais, como papiro, ráfia ou palha.
Para o artista, cada obra é quase como um filho: difícil de hierarquizar, mas sempre carregada de afecto e de sentido. O seu trabalho não é apenas uma demonstração de técnica, é uma filosofia de vida: ver potencial onde outros só vêem lixo, construir beleza a partir daquilo que o mundo descarta.
Mais do que a estética, a sua arte vai além da mera expressão criativa, procura interrogar a sociedade explorando temas de identidade e comentário social. Um dos exemplos mais notórios são os uniformes que concebeu para escolas e igrejas, representativos de uma parte importante da identidade das pessoas na sociedade queniana
Estas peças, feitas de metal reciclado, tornam-se metáforas visuais de uma discussão mais profunda: até que ponto a imposição de uniformes molda o pensamento dos jovens, restringindo a sua capacidade de escolha e, por extensão, a sua liberdade enquanto adultos?
“Quando somos jovens não temos muita liberdade para escolher o que queremos ser e, isso molda a nossa mente a não escolher como viver como adultos”.
Essa preocupação com a identidade, individual e colectiva, atravessa grande parte da sua obra. Ao transformar o lixo em algo belo, o artista lembra-nos que a dignidade e o valor podem ser resgatados até nas condições mais adversas.
Reconhecimento Mundial

O talento de Dickens Otieno não tardou a ultrapassar fronteiras. No Quénia, expôs em galerias como a Circle Art Gallery, onde apresentou em 2020 a exposição Mabati Tailor. Em 2021, levou o seu trabalho até Los Angeles, com Mtaani, na Steve Turner Gallery e, em 2023, regressou a Nairobi com a mostra Trails.
A nível internacional, marcou presença em feiras de renome como a Art Dubai e a Untitled Art Fair, além de integrar exposições colectivas em Londres, Nova Iorque e Veneza. Na Bienal de Veneza de 2022, as suas peças atraíram a atenção de críticos e coleccionadores, reforçando a ideia de que a arte africana contemporânea não é periférica, mas central na redefinição das estéticas globais.
O percurso internacional de Otieno não se limita às exposições. Participou em residências artísticas, como a Nafasi Art Space, na Tanzânia e na Civitella Ranieri Foundation, em Itália. Essas experiências permitiram-lhe testar novos contextos, trocar conhecimentos com outros criadores e ampliar o alcance das suas reflexões.
Nos últimos anos, Dickens Otieno tem expandido a escala e a complexidade das suas obras. Peças como Panya Routes, com mais de cinco metros de comprimento, demonstram a sua capacidade de trabalhar em grandes dimensões, criando verdadeiros murais metálicos que impressionam pela grandiosidade.
Em obras como Waves (Oscillations), explora não apenas a cor e o padrão, mas também a forma como a luz interage com o alumínio, criando reflexos que mudam consoante a posição do espectador. Esta exploração da luminosidade acrescenta uma dimensão quase imaterial à solidez metálica das peças.
Além das tapeçarias, tem produzido esculturas que dialogam com a paisagem natural e urbana, abordando temas como trilhos, memórias da infância rural e o contraste entre os animais do campo e a modernidade citadina.
Conclusão
Dickens Otieno é hoje um dos artistas quenianos mais reconhecidos no panorama internacional, não apenas pela originalidade da sua técnica, mas pela profundidade das questões que levanta. A sua arte lembra-nos que a criatividade pode florescer mesmo nos lugares mais improváveis que a identidade pode ser tecida a partir de memórias e resíduos e que a sustentabilidade é também um acto de imaginação.
À medida que continua a expandir a escala das suas obras e a consolidar o seu lugar nas grandes plataformas da arte mundial, Otieno convida-nos a olhar para o mundo com novos olhos. Ensina-nos que há sempre beleza escondida, mesmo no lixo descartado e que o verdadeiro desafio da arte é dar voz ao que parecia condenado ao silêncio.
Mais do que um artista, é um contador de histórias que recorre ao lixo para falar da vida, da sociedade e do futuro. O seu trabalho é um apelo para que, em tempos de crise ambiental e de desafios identitários, encontremos formas de reaproveitar, reinventar e resistir.
O que achas da proposta deste artista queniano, Dickens Otieno? Queremos saber a tua opinião, não hesites em comentar e se gostaste do artigo partilha e dá um “like/gosto”.
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Imagem: © 2025 Francisco Lopes-Santos
