Índice
ToggleA Arte do Lixo: Cyrus Kabiru E O Afrofuturismo
Conheces os artistas africanos que transformam lixo em arte? Não? Então prepara-te para conhecer Cyrus Kabiru, do Quénia, cujas obras contam histórias poderosas sobre identidade, tecnologia, herança africana e sobrevivência num mundo saturado de resíduos. Vem descobrir um dos movimentos criativos mais surpreendentes e inventivos do continente africano contemporâneo.
Num mundo onde o consumo excessivo e o desperdício crescem a olhos vistos, há vozes em África que encontram beleza onde outros apenas veem abandono, ruína e obsolescência. Kabiru é uma dessas vozes singulares que não se limitam a denunciar o problema do lixo urbano, transformam-no num instrumento ativo de criação estética, reflexão cultural e imaginação do futuro.
Com uma mistura invulgar de artesanato, design, escultura, fotografia e performance, Cyrus Kabiru recicla lixo eletrónico, peças metálicas, objetos domésticos descartados e fragmentos recolhidos nas ruas de Nairobi, dando-lhes uma segunda vida sob a forma de esculturas que podem ser vestidas/usadas, objetos híbridos e imagens icónicas.
Este é o 14.º artigo de um conjunto de 17, dedicada a criadores visionários que não só resgatam materiais esquecidos, como também reinventam a forma de pensar a arte, a sustentabilidade e o futuro do planeta. Cada peça é uma prova de resistência criativa e de ligação profunda ao espaço urbano africano, mostrando que daquilo que parecia inútil pode nascer algo profundamente simbólico, crítico e transformador.
Se procuras inovação, pensamento radical e uma perspetiva diferente sobre o que a arte pode ser no século XXI, esta viagem é para ti. Vais conhecer um artista que desafia os limites do possível e que faz de África um laboratório vivo de arte contemporânea feita a partir do inesperado: o lixo.
Cyrus Kabiru

Cyrus Kabiru nasceu em 1984, em Nairobi, no Quénia, cidade onde ainda vive e trabalha e cuja paisagem urbana marcou profundamente a sua visão artística desde a infância. Cresceu num contexto modesto, numa casa em frente a uma grande lixeira, cenário quotidiano que moldou o seu olhar sobre os objectos descartados e a vida útil dos materiais.
Longe de ser apenas um pano de fundo, esse ambiente tornou-se um verdadeiro campo de aprendizagem visual, onde o lixo deixava de ser apenas resíduos e passava a ser um possibilidade. Kabiru é um artista autodidacta, facto que reforça a singularidade do seu percurso.
Desde cedo demonstrou interesse por objectos técnicos e mecanismos simples, muito influenciado pelo pai que reparava óculos usando materiais reaproveitados. Essa prática doméstica, aparentemente banal, foi decisiva: despertou em Cyrus a curiosidade pelo acto de reconstruir e pela capacidade de dar nova função a algo considerado inutilizável.
Embora o pai desejasse que ele seguisse uma carreira em engenharia electrónica, Kabiru encontrou na arte o espaço onde essas inclinações técnicas e criativas podiam coexistir. A sua prática artística começou ainda na adolescência, criando óculos improvisados para uso próprio, inicialmente como brincadeira e afirmação identitária.
Com o tempo, esses objectos tornaram-se cada vez mais complexos, conceptuais e escultóricos. A partir de 2007, com a primeira exposição no Kuona Trust Visual Arts Centre, em Nairobi, o seu trabalho começou a ganhar reconhecimento institucional e internacional.
Desde então, Kabiru consolidou-se como figura central da arte africana contemporânea, amplamente reconhecido pelo seu contributo inovador no cruzamento entre arte, design, moda e crítica social.
A Arte de Cyrus Kabiru

A arte de Cyrus Kabiru distingue-se imediatamente pela sua linguagem visual inconfundível. É sobretudo conhecido pela sua série C-Stunners, óculos esculturais criados a partir de lixo electrónico, componentes de computadores, fios eléctricos, botões de teclados, tampas de garrafas, peças de rádio, fragmentos metálicos e objectos recolhidos nas ruas de Nairobi ou durante as suas viagens.
Estes óculos não são concebidos como acessórios funcionais, mas sim como esculturas que podem ser vestidas, questionam a forma como vemos o mundo — literal e simbolicamente. A prática de Kabiru é profundamente experimental e intuitiva. Ele próprio afirma que trabalha de forma livre, sem planeamento rígido, deixando que os materiais “falem” e sugiram formas e soluções.
O processo criativo começa quase sempre pela recolha: caminhar pela cidade é parte essencial do seu método. Ao observar o lixo urbano, o artista identifica texturas, volumes e potenciais narrativos que mais tarde se transformam em objectos artísticos. A visão surge antes do material final, mas é o encontro com o lixo que orienta a concretização da obra.
Além dos óculos, Kabiru desenvolveu outras séries marcantes, como a Black Mamba, inspirada nas bicicletas homónimas que foram durante décadas um dos principais meios de transporte no Quénia e esculturas baseadas em rádios, capacetes e objectos populares.
Em todas elas, o artista combina escultura, artesanato, design e fotografia, pois muitas das obras ganham uma segunda vida através de auto-retratos performativos, onde Kabiru veste as peças e encarna personagens híbridas entre o passado, o presente e o futuro. O seu trabalho desafia categorias fixas e recusa limites disciplinares, afirmando-se como prática artística total.
O Afrofuturismo

O simbolismo na obra de Cyrus Kabiru é denso, multifacetado e profundamente ligado à ideia de transformação. Ao utilizar lixo electrónico e objectos descartados, o artista propõe uma reflexão directa sobre o ciclo de consumo mundial e o destino dos resíduos tecnológicos, muitos dos quais acabam em países africanos.
O lixo que Kabiru utiliza não é neutro: carrega marcas de desigualdade económica, de circulação global de bens e de assimetrias entre centros de produção e periferias de descarte. As C-Stunners, em particular, funcionam como metáforas visuais da percepção. Óculos servem para ver, mas também para se ser visto.
Ao criar óculos impossíveis, excessivos e futuristas, Kabiru questiona quem controla a narrativa sobre África e quem define como o continente é observado. Os seus objectos obrigam o espectador a reconsiderar preconceitos e a confrontar a criatividade africana como produtora de futuro e não apenas como guardiã do passado.
Inserido no movimento do Afrofuturismo, Kabiru mistura referências de ficção científica, estética cyberpunk e tradição africana. O lixo tecnológico torna-se matéria-prima para imaginar futuros alternativos onde África não é uma vítima da modernidade, mas sim uma protagonista activa da reinvenção do mundo.
Ao reaproveitar resíduos vindos de todo o mundo, o artista afirma uma identidade híbrida, móvel e transnacional, reflectindo a complexidade cultural do continente africano contemporâneo.
Carreira e Reconhecimento

Embora sendo autodidacta, a trajectória de Cyrus Kabiru é marcada por um percurso consistente e internacionalmente reconhecido. Após a sua estreia no Kuona Trust, o artista participou em diversas exposições individuais e colectivas em África, Europa e nos Estados Unidos da América.
Em 2010, foi artista residente na Han Nefkens Foundation, em Barcelona, experiência que alargou o seu campo de actuação e o colocou em diálogo com contextos artísticos internacionais. Kabiru foi seleccionado em 2013 para o programa TED Fellowship – The Young, The Gifted, The Undiscovered, um reconhecimento do impacto inovador do seu trabalho.
Em 2016, recebeu o Quartz Africa Innovators Award, sublinhando a dimensão social e criativa da sua prática. Em 2021, foi artista residente no AKKA Project, em Veneza, consolidando a sua presença no circuito europeu de arte contemporânea.
As suas obras integram hoje importantes colecções públicas e privadas, incluindo o Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, o Zeitz MOCAA, na Cidade do Cabo e o Studio Museum in Harlem. Kabiru participou em eventos de grande visibilidade, como a Bienal de Design de Istambul, a Milan Design Week, o LagosPhoto Festival e feiras internacionais como a 1-54.
A sua trajectória demonstra que uma prática enraizada na rua pode alcançar reconhecimento mundial sem perder autenticidade nem compromisso crítico.
Mensagem e Impacto

A dimensão social e ambiental da obra de Cyrus Kabiru é central e inseparável da sua estética. Ao trabalhar com lixo, o artista chama a atenção para a crise ambiental mundial e para a forma desigual como os resíduos são distribuídos pelo mundo.
A sua prática denuncia o destino do lixo electrónico, frequentemente exportado para África e transforma esse problema numa plataforma de criação e debate. Kabiru desenvolve também um trabalho activo de envolvimento comunitário. Realiza oficinas em escolas, promove programas educativos e criou estúdios onde crianças e jovens têm acesso gratuito a aulas de arte.
Para ele, promover capacidades a novas gerações de forma a olharem para o lixo de forma criativa é um gesto político e transformador. A arte torna-se ferramenta de inclusão, educação e construção de futuro. Socialmente, o seu trabalho afirma a criatividade africana como resposta à precariedade.
Ao mostrar que é possível criar beleza, identidade e pensamento crítico a partir daquilo que foi descartado, Kabiru desafia narrativas de escassez e propõe uma ética da reinvenção. O lixo deixa de ser um sinal de falência para passar a ser um campo de possibilidades.
Visão de Futuro
A obra de Cyrus Kabiru ocupa um lugar fundamental no debate contemporâneo sobre sustentabilidade, identidade e imaginação do futuro. Num mundo saturado de resíduos e marcado por crises ambientais sucessivas, o seu trabalho demonstra que a arte pode funcionar como espaço de ensaio para novas formas de relação com a matéria, a tecnologia e a memória colectiva.
Kabiru não propõe soluções técnicas para o problema do lixo, mas oferece algo talvez mais poderoso: uma mudança de olhar. Ao transformar resíduos em arte, ele convida-nos a reconsiderar o valor do que descartamos e a reconhecer que o futuro depende da capacidade de reaproveitar, reconstruir e reimaginar.
A sua prática mostra que África não é apenas receptora de lixo mundial, mas também produtora de pensamento crítico e de estéticas futuristas. Seguir o percurso de Cyrus Kabiru é aceitar que o futuro pode nascer do entulho e que a criatividade pode florescer no caos urbano e a arte ser uma das ferramentas mais eficazes para questionar o mundo e propor alternativas.
No cruzamento entre lixo, identidade e imaginação, Kabiru constrói uma obra que é simultaneamente africana, mundial, local e universal, mas acima de tudo, profundamente contemporânea.
Conclusão
Cyrus Kabiru destaca-se como um exemplo claro da arte africana contemporânea, transformando a adversidade em linguagem criativa. Utilizando lixo urbano e tecnológico, o artista queniano constrói objectos que desafiam categorias e questionam percepções, propondo futuros alternativos.
As suas esculturas vestíveis, fotografias e instalações representam actos de resistência estética e política, demonstrando que o lixo não é um fim, mas sim matéria para novos começos. Num tempo em que a sustentabilidade se tornou uma urgência, o trabalho de Kabiru ganha relevância acrescida, ao mostrar que reciclar pode ser um acto poético, crítico e profundamente humano.
A crescente visibilidade de artistas africanos como Kabiru no panorama da arte contemporânea mundial desafia preconceitos e estereótipos sobre o continente. A sua obra, profundamente enraizada nas realidades locais de Nairobi, mas com uma linguagem universal, contribui decisivamente para promover o diálogo sobre temas cruciais como o consumo, o impacto ambiental e a identidade no século XXI.
O que achas da arte de Cyrus Kabiru? Queremos saber a tua opinião, não hesites em comentar e se gostaste do artigo partilha e dá um “like/gosto”.
Ver Também
A Arte do Lixo: Mudungaze e as Máscaras que Contam Histórias
A Arte do Lixo: Dickens Otieno, Tecer Arte Com Latas De Metal
A Arte do Lixo: El Anatsui, Entre Tradição e Globalização
A Arte do Lixo: Moffat Takadiwa, Tecidos do Desperdício
A Arte Do Lixo: Henri Sagna E O Mosquito Que Fala
A Arte do Lixo: Simonet Biokou, A Forja Da Tradição
A Arte do Lixo: Nnenna Okore, Esculpir o Orgânico
A Arte do Lixo: Gonçalo Mabunda, Falar de Paz
A Arte do Lixo: Johnson Zuze, Redefinir O Caos
A Arte do Lixo: Sokari Douglas Camp, Esculpir O Petróleo
A Arte do Lixo: Romuald Hazoumè, Bidons Reinventados
A Arte do Lixo: Pekiwa, Portas, Madeira e Mar
A Arte do Lixo: Dotun Popoola, A Força Do Metal
A Arte do Lixo: Cyrus Kabiru E O Afrofuturismo
Imagem: © 2025 Francisco Lopes-Santos
