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Domingo, Dezembro 14, 2025

A Arte do Lixo: Cyrus Kabiru E O Afrofuturismo

E se o lixo pudesse falar que histórias nos contaria? Talvez nos falasse de histórias de abandono e de desperdício além de consumo desenfreado que devora recursos sem pensar no amanhã, ou talvez nos lembrasse que cada objecto carrega uma memória, um uso, uma vida anterior.Em África há artistas que ousam dar-lhe outra voz: a voz da beleza, da memória e da resistência cultural. São criadores que não vêem lixo, mas sim matéria-prima para a imaginação, símbolos de resistência e possibilidades infinitas. No lixo que a sociedade descarta, eles descobrem matéria-prima para reinventar a vida e inspirar comunidades inteiras.

A Arte do Lixo: Cyrus Kabiru E O Afrofuturismo


Conheces os artistas africanos que transformam lixo em arte? Não? Então prepara-te para conhecer Cyrus Kabiru, do Quénia, cujas obras contam histórias poderosas sobre identidade, tecnologia, herança africana e sobrevivência num mundo saturado de resíduos. Vem descobrir um dos movimentos criativos mais surpreendentes e inventivos do continente africano contemporâneo.

Num mundo onde o consumo excessivo e o desperdício crescem a olhos vistos, há vozes em África que encontram beleza onde outros apenas veem abandono, ruína e obsolescência. Kabiru é uma dessas vozes singulares que não se limitam a denunciar o problema do lixo urbano, transformam-no num instrumento ativo de criação estética, reflexão cultural e imaginação do futuro.

Com uma mistura invulgar de artesanato, design, escultura, fotografia e performance, Cyrus Kabiru recicla lixo eletrónico, peças metálicas, objetos domésticos descartados e fragmentos recolhidos nas ruas de Nairobi, dando-lhes uma segunda vida sob a forma de esculturas que podem ser vestidas/usadas, objetos híbridos e imagens icónicas.

Este é o 14.º artigo de um conjunto de 17, dedicada a criadores visionários que não só resgatam materiais esquecidos, como também reinventam a forma de pensar a arte, a sustentabilidade e o futuro do planeta. Cada peça é uma prova de resistência criativa e de ligação profunda ao espaço urbano africano, mostrando que daquilo que parecia inútil pode nascer algo profundamente simbólico, crítico e transformador.

Se procuras inovação, pensamento radical e uma perspetiva diferente sobre o que a arte pode ser no século XXI, esta viagem é para ti. Vais conhecer um artista que desafia os limites do possível e que faz de África um laboratório vivo de arte contemporânea feita a partir do inesperado: o lixo.


Cyrus Kabiru


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Imagem © 2018 Zeitz MOCAA Museum of Contemporary African Art

Cyrus Kabiru nasceu em 1984, em Nairobi, no Quénia, cidade onde ainda vive e trabalha e cuja paisagem urbana marcou profundamente a sua visão artística desde a infância. Cresceu num contexto modesto, numa casa em frente a uma grande lixeira, cenário quotidiano que moldou o seu olhar sobre os objectos descartados e a vida útil dos materiais.

Longe de ser apenas um pano de fundo, esse ambiente tornou-se um verdadeiro campo de aprendizagem visual, onde o lixo deixava de ser apenas resíduos e passava a ser um possibilidade. Kabiru é um artista autodidacta, facto que reforça a singularidade do seu percurso.

Desde cedo demonstrou interesse por objectos técnicos e mecanismos simples, muito influenciado pelo pai que reparava óculos usando materiais reaproveitados. Essa prática doméstica, aparentemente banal, foi decisiva: despertou em Cyrus a curiosidade pelo acto de reconstruir e pela capacidade de dar nova função a algo considerado inutilizável.

Embora o pai desejasse que ele seguisse uma carreira em engenharia electrónica, Kabiru encontrou na arte o espaço onde essas inclinações técnicas e criativas podiam coexistir. A sua prática artística começou ainda na adolescência, criando óculos improvisados para uso próprio, inicialmente como brincadeira e afirmação identitária.

Com o tempo, esses objectos tornaram-se cada vez mais complexos, conceptuais e escultóricos. A partir de 2007, com a primeira exposição no Kuona Trust Visual Arts Centre, em Nairobi, o seu trabalho começou a ganhar reconhecimento institucional e internacional.

Desde então, Kabiru consolidou-se como figura central da arte africana contemporânea, amplamente reconhecido pelo seu contributo inovador no cruzamento entre arte, design, moda e crítica social.


A Arte de Cyrus Kabiru


(20251213) A Arte do Lixo Cyrus Kabiru E O Afrofuturismo
Imagem © 2025 BBC

A arte de Cyrus Kabiru distingue-se imediatamente pela sua linguagem visual inconfundível. É sobretudo conhecido pela sua série C-Stunners, óculos esculturais criados a partir de lixo electrónico, componentes de computadores, fios eléctricos, botões de teclados, tampas de garrafas, peças de rádio, fragmentos metálicos e objectos recolhidos nas ruas de Nairobi ou durante as suas viagens.

Estes óculos não são concebidos como acessórios funcionais, mas sim como esculturas que podem ser vestidas, questionam a forma como vemos o mundo — literal e simbolicamente. A prática de Kabiru é profundamente experimental e intuitiva. Ele próprio afirma que trabalha de forma livre, sem planeamento rígido, deixando que os materiais “falem” e sugiram formas e soluções.

O processo criativo começa quase sempre pela recolha: caminhar pela cidade é parte essencial do seu método. Ao observar o lixo urbano, o artista identifica texturas, volumes e potenciais narrativos que mais tarde se transformam em objectos artísticos. A visão surge antes do material final, mas é o encontro com o lixo que orienta a concretização da obra.

Além dos óculos, Kabiru desenvolveu outras séries marcantes, como a Black Mamba, inspirada nas bicicletas homónimas que foram durante décadas um dos principais meios de transporte no Quénia e esculturas baseadas em rádios, capacetes e objectos populares.

Em todas elas, o artista combina escultura, artesanato, design e fotografia, pois muitas das obras ganham uma segunda vida através de auto-retratos performativos, onde Kabiru veste as peças e encarna personagens híbridas entre o passado, o presente e o futuro. O seu trabalho desafia categorias fixas e recusa limites disciplinares, afirmando-se como prática artística total.


O Afrofuturismo


(20251213) A Arte do Lixo Cyrus Kabiru E O Afrofuturismo
Imagem © 2021 Courtesy Cyrus Kabiru

O simbolismo na obra de Cyrus Kabiru é denso, multifacetado e profundamente ligado à ideia de transformação. Ao utilizar lixo electrónico e objectos descartados, o artista propõe uma reflexão directa sobre o ciclo de consumo mundial e o destino dos resíduos tecnológicos, muitos dos quais acabam em países africanos.

O lixo que Kabiru utiliza não é neutro: carrega marcas de desigualdade económica, de circulação global de bens e de assimetrias entre centros de produção e periferias de descarte. As C-Stunners, em particular, funcionam como metáforas visuais da percepção. Óculos servem para ver, mas também para se ser visto.

Ao criar óculos impossíveis, excessivos e futuristas, Kabiru questiona quem controla a narrativa sobre África e quem define como o continente é observado. Os seus objectos obrigam o espectador a reconsiderar preconceitos e a confrontar a criatividade africana como produtora de futuro e não apenas como guardiã do passado.

Inserido no movimento do Afrofuturismo, Kabiru mistura referências de ficção científica, estética cyberpunk e tradição africana. O lixo tecnológico torna-se matéria-prima para imaginar futuros alternativos onde África não é uma vítima da modernidade, mas sim uma protagonista activa da reinvenção do mundo.

Ao reaproveitar resíduos vindos de todo o mundo, o artista afirma uma identidade híbrida, móvel e transnacional, reflectindo a complexidade cultural do continente africano contemporâneo.


Carreira e Reconhecimento


(20251213) A Arte do Lixo Cyrus Kabiru E O Afrofuturismo
Imagem © 2025 BBC

Embora sendo autodidacta, a trajectória de Cyrus Kabiru é marcada por um percurso consistente e internacionalmente reconhecido. Após a sua estreia no Kuona Trust, o artista participou em diversas exposições individuais e colectivas em África, Europa e nos Estados Unidos da América.

Em 2010, foi artista residente na Han Nefkens Foundation, em Barcelona, experiência que alargou o seu campo de actuação e o colocou em diálogo com contextos artísticos internacionais. Kabiru foi seleccionado em 2013 para o programa TED Fellowship – The Young, The Gifted, The Undiscovered, um reconhecimento do impacto inovador do seu trabalho.

Em 2016, recebeu o Quartz Africa Innovators Award, sublinhando a dimensão social e criativa da sua prática. Em 2021, foi artista residente no AKKA Project, em Veneza, consolidando a sua presença no circuito europeu de arte contemporânea.

As suas obras integram hoje importantes colecções públicas e privadas, incluindo o Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, o Zeitz MOCAA, na Cidade do Cabo e o Studio Museum in Harlem. Kabiru participou em eventos de grande visibilidade, como a Bienal de Design de Istambul, a Milan Design Week, o LagosPhoto Festival e feiras internacionais como a 1-54.

A sua trajectória demonstra que uma prática enraizada na rua pode alcançar reconhecimento mundial sem perder autenticidade nem compromisso crítico.


Mensagem e Impacto


(20251213) A Arte do Lixo Cyrus Kabiru E O Afrofuturismo
Imagem © 2025 Francisco Lopes-Santos

A dimensão social e ambiental da obra de Cyrus Kabiru é central e inseparável da sua estética. Ao trabalhar com lixo, o artista chama a atenção para a crise ambiental mundial e para a forma desigual como os resíduos são distribuídos pelo mundo.

A sua prática denuncia o destino do lixo electrónico, frequentemente exportado para África e transforma esse problema numa plataforma de criação e debate. Kabiru desenvolve também um trabalho activo de envolvimento comunitário. Realiza oficinas em escolas, promove programas educativos e criou estúdios onde crianças e jovens têm acesso gratuito a aulas de arte.

Para ele, promover capacidades a novas gerações de forma a olharem para o lixo de forma criativa é um gesto político e transformador. A arte torna-se ferramenta de inclusão, educação e construção de futuro. Socialmente, o seu trabalho afirma a criatividade africana como resposta à precariedade.

Ao mostrar que é possível criar beleza, identidade e pensamento crítico a partir daquilo que foi descartado, Kabiru desafia narrativas de escassez e propõe uma ética da reinvenção. O lixo deixa de ser um sinal de falência para passar a ser um campo de possibilidades.

Visão de Futuro


A obra de Cyrus Kabiru ocupa um lugar fundamental no debate contemporâneo sobre sustentabilidade, identidade e imaginação do futuro. Num mundo saturado de resíduos e marcado por crises ambientais sucessivas, o seu trabalho demonstra que a arte pode funcionar como espaço de ensaio para novas formas de relação com a matéria, a tecnologia e a memória colectiva.

Kabiru não propõe soluções técnicas para o problema do lixo, mas oferece algo talvez mais poderoso: uma mudança de olhar. Ao transformar resíduos em arte, ele convida-nos a reconsiderar o valor do que descartamos e a reconhecer que o futuro depende da capacidade de reaproveitar, reconstruir e reimaginar.

A sua prática mostra que África não é apenas receptora de lixo mundial, mas também produtora de pensamento crítico e de estéticas futuristas. Seguir o percurso de Cyrus Kabiru é aceitar que o futuro pode nascer do entulho e que a criatividade pode florescer no caos urbano e a arte ser uma das ferramentas mais eficazes para questionar o mundo e propor alternativas.

No cruzamento entre lixo, identidade e imaginação, Kabiru constrói uma obra que é simultaneamente africana, mundial, local e universal, mas acima de tudo, profundamente contemporânea.


Conclusão


Cyrus Kabiru destaca-se como um exemplo claro da arte africana contemporânea, transformando a adversidade em linguagem criativa. Utilizando lixo urbano e tecnológico, o artista queniano constrói objectos que desafiam categorias e questionam percepções, propondo futuros alternativos.

As suas esculturas vestíveis, fotografias e instalações representam actos de resistência estética e política, demonstrando que o lixo não é um fim, mas sim matéria para novos começos. Num tempo em que a sustentabilidade se tornou uma urgência, o trabalho de Kabiru ganha relevância acrescida, ao mostrar que reciclar pode ser um acto poético, crítico e profundamente humano.

A crescente visibilidade de artistas africanos como Kabiru no panorama da arte contemporânea mundial desafia preconceitos e estereótipos sobre o continente. A sua obra, profundamente enraizada nas realidades locais de Nairobi, mas com uma linguagem universal, contribui decisivamente para promover o diálogo sobre temas cruciais como o consumo, o impacto ambiental e a identidade no século XXI.

 


O que achas da arte de Cyrus Kabiru? Queremos saber a tua opinião, não hesites em comentar e se gostaste do artigo partilha e dá um “like/gosto”.

 

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Imagem: © 2025 Francisco Lopes-Santos 
Francisco Lopes-Santos

Atleta Olímpico, tem um Doutoramento em Antropologia da Arte e dois Mestrados, um em Treino de Alto Rendimento e outro em Belas Artes, além de vários cursos de especialização em diversas áreas. Escritor prolifero, já publicou vários livros de Poesia e de Ficção, além de vários ensaios e artigos científicos.

Francisco Lopes-Santos
Francisco Lopes-Santoshttp://xesko.webs.com
Atleta Olímpico, tem um Doutoramento em Antropologia da Arte e dois Mestrados, um em Treino de Alto Rendimento e outro em Belas Artes, além de vários cursos de especialização em diversas áreas. Escritor prolifero, já publicou vários livros de Poesia e de Ficção, além de vários ensaios e artigos científicos.
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