Mia Couto: Novo Livro “A Cegueira do Rio”
O consagrado escritor moçambicano Mia Couto lançou hoje a sua mais recente obra, “A Cegueira do Rio“, uma narrativa inspirada por eventos históricos pouco conhecidos, mas profundamente marcantes, ocorridos no início do século XX, na província de Niassa, em Moçambique.
O livro, publicado pela Fundação Fernando Leite Couto, chega ao público com uma edição inicial de 2.000 exemplares, prometendo mais uma reflexão sobre as cicatrizes da história e a luta pela memória colectiva.
Durante a conferência de imprensa realizada pelo lançamento, Mia Couto explicou que a ideia do livro nasceu a partir de um episódio verídico de 1914, no auge das tensões da Primeira Guerra Mundial, na fronteira entre Moçambique e a actual Tanzânia.
“Todos quiseram apagar aquele incidente: os alemães do outro lado da fronteira e as comunidades moçambicanas do nosso lado e todos tinham o mesmo interesse em apagar aquele incidente”.
“Isso é muito raro na história e suscitou-me vontade de inventar qualquer coisa à volta disso”.
Afirmou o escritor, referindo-se ao massacre perpetrado pelo exército alemão colonial após a revolta Maji-Maji, uma das mais sangrentas insurreições anti-coloniais da África Oriental.
A Guerra Que Todos Esqueceram
No entanto, o episódio desapareceu tanto da memória alemã como das comunidades locais, numa incomum convergência de interesses, onde ambos os lados escolheram esquecer.
No novo romance, o autor denuncia a tendência para criar “uma versão única da história”, uma prática que, segundo ele, priva as sociedades da riqueza das suas memórias múltiplas.
“É pela memória colectiva, por essas versões contra um processo de esquecimento, de apagar da memória que, naquele caso, até acho isto um pouco usual, não foi imposta a partir de cima, quer dizer, não é a versão dos vencedores que se sobrepõe às outras, mas há ali um momento que todos querem esquecer por razões diferentes”.
Além de explorar o impacto psicológico e social de um passado negado, “A Cegueira do Rio” também aborda o apagamento simbólico do espaço geográfico e da própria escrita.
“E, de repente, o lugar é apagado da geografia, da história e, como se não fosse suficiente, a própria escrita se apaga”.
“Aparentemente há uma espécie de inversão dos lugares de poder e os africanos, os poucos que sabem escrever, são os únicos que guardam essa sabedoria”.
Comentou Mia Couto, em alusão à escassez de relatos locais sobre o incidente.
A obra sublinha a importância da escrita como uma ferramenta de resistência, especialmente em contextos onde os povos colonizados são silenciados. Para Mia Couto, a solução para lidar com as feridas da história passa por uma revisitação artística do passado.
Revisitar o Passado
“A participação de moçambicanos no exército colonial, por exemplo, foi esquecida e agora é o Marcelo Panguana, uma primeira voz da literatura, a dizer [que] esteve lá do outro lado, acho que a literatura pode fazer esse exercício de convidar a revisitar o passado, porque a literatura não está à procura de culpados”.
Com “A Cegueira do Rio”, Mia Couto oferece uma reflexão profunda sobre os mecanismos de esquecimento e como eles moldam a identidade colectiva. Ao recusar a simplificação da história, o autor desafia o leitor a questionar as versões oficiais dos acontecimentos, propondo uma narrativa plural e multifacetada que dá voz aos marginalizados.
Um Gigante das Letras
Ex-jornalista, professor e actualmente biólogo, Mia Couto já foi galardoado com vários prémios literários, incluindo o Prémio Camões em 2013 e o Prémio José Craveirinha em 2022.
Entre as suas obras mais conhecidas estão “Terra Sonâmbula” (1992), “O Último Voo do Flamingo” (2000) e “A Confissão da Leoa” (2012).
Com um estilo que mistura o realismo mágico, as tradições orais africanas e uma poética inovadora, o escritor tem conquistado leitores e críticos em todo o mundo. As suas obras estão traduzidas em mais de 30 línguas e, ao longo dos anos, Mia Couto tem utilizado a sua escrita para dar voz aos silenciados e explorar as complexidades da identidade africana.
Mia Couto é, sem dúvida, um dos mais respeitados autores da lusofonia. Com uma carreira literária que abrange várias décadas, o autor recebeu distinções como o Prémio Vergílio Ferreira (1999), o Prémio União Latina de Literaturas Românicas (2007) e o Prémio Eduardo Lourenço (2011), pelo conjunto da sua obra.
O seu romance “Terra Sonâmbula” foi eleito um dos 12 melhores livros africanos do século XX e a sua obra “Jesusalém” figurou entre os 20 melhores livros de ficção publicados em França, segundo a rádio France Culture e a revista Télérama.
Com “A Cegueira do Rio“, Mia Couto continua a aprofundar a sua reflexão sobre o legado colonial, o apagamento da memória e a necessidade de uma revisitação artística do passado. É um livro que promete conquistar leitores à procura de uma visão mais crítica e plural da história africana e que reforça a importância da literatura como uma ponte entre o passado e o futuro.
Conclusão
O livro que já desperta curiosidade e debate, promete ser mais uma obra de referência no vasto legado literário de Mia Couto.
Imagem: © Tiago Petinga